Milton Nascimento (por Romero Carvalho)

O “trem que chega é o mesmo trem da partida”, e isso para mineiro significa ainda mais. [...]

O “trem que chega é o mesmo trem da partida”, e isso para mineiro significa ainda mais.

Bituca está se apagando. Sua memória, se esvaindo, com o “coração aberto em vento por toda a eternidade”. Suas canções, “jogos de criar sorte ou azar”, “todas as canções”, inutilmente, eternamente, reverberam em nossa cabeça com essa constatação voraz da inefabilidade.

Pouco antes, Bituca fez a “melhor viagem” de sua vida, ao lado do filho em um motorhome pelos EUA, ouvindo Beatles e curtindo sua última grande aventura. Se atrasasse um pouco, esta viagem já não seria possível. A hora do encontro já seria a da despedida.

Mas como se despedir de um sujeito com uma obra que nos toca tão profundamente? Como eu já escrevi, a obra genial deste lindo negro de Três Pontas assume um caráter espiritual, místico, que insiste em lembrar ao adulto sobre moleque que mora sempre em nosso coração e nos dá a mão quando este adulto fraqueja. Ao falar de amizade, palavra, respeito, caráter, bondade, alegria e amor, de um solidário que nunca quis solidão, ela toca no mais íntimo do nosso ser, fazendo com que Bituca esteja conosco como um parente próximo, um amigo querido, um companheiro de jornada. E agora, quando o silêncio começa a pousar sobre o rosto do tempo, percebemos que Milton nunca foi apenas um artista genial, mas um sopro do divino que escolheu o som como morada. Há tristezas que não cabem em diagnósticos e esta é uma delas. Mas mesmo quando a memória se desfaz como névoa sobre as montanhas de Minas, permanece o eco do que é verdadeiro: sua voz ainda mora no ar, nas janelas abertas de cada casa que um dia ouviu Travessia.

Bituca não se apaga: ele se espalha. Torna-se vento, rumor de trem distante, canto que vem das Gerais e adormece em nossos corações. Sua música é o lugar onde o tempo descansa e onde o esquecimento não tem poder. Porque quem fez do amor um idioma e da amizade uma prece nunca parte de todo. E se a mente se esvai, o espírito ainda canta com os passarinhos de “Notícias do Brasil”, com os ‘meninos’ do “Clube da Esquina”, com o “coração de estudante” que pulsa em cada um de nós. “Amor é dom da natureza. Amar é laço que não escraviza”. Milton agora retorna à origem do som – à pura vibração –, e ali, onde já não há lembrança nem perda, ele continua inteiro, feito luz mineira filtrada por nuvens ciganas, feito canção que não termina.

Caro Augusto, não lhe conheço pessoalmente, mas deixo aqui meu abraço e minha gratidão. Segure forte na mão do seu pai e transmita a ele todo nosso carinho. “Ser o que serve e é servido. Só o amor é tão bonito. Ser o que planta e senta à mesa, amor é dom da natureza”. As janelas seguem abertas ao negro do mundo lunar. E sempre estarão.


Romero Carvalho é Jornalista e Doutor em Ciência da Religião pela PUC/Minas

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