
Revi o belíssimo filme Perfume de Mulher há poucos dias e me surpreendi novamente. Não apenas pela atuação consagrada de Al Pacino e do jovem Chris O’Donnell, mas pela riqueza de detalhes que revelam dois momentos distintos da existência que se cruzam. São pequenos gestos, falas aparentemente simples e uma convivência intensa que apontam para algo maior: encontros capazes de devolver sentido à vida quando ela parece ter perdido o rumo.
Talvez seja por isso que alguns filmes não envelhecem. Não falam de época, falam de caráter. Em tempos de terceirização do pensamento, essas narrativas lembram que viver é sustentar escolhas, não apenas resultados.
Perfume de Mulher não é apenas a história de um coronel cego e de um jovem estudante. É o retrato de dois tempos da vida que se encontram: o tempo da perda e o tempo da escolha. Entre eles, nasce um vínculo improvável e profundamente humano.
O filme sugere que certos encontros não acontecem para confortar ou convencer, mas para reposicionar vidas.
Charlie aprende que caráter não se delega.
Frank relembra que a dignidade só faz sentido quando ainda pode ser transmitida.
Frank Slade e Charlie Simms pertencem a gerações distintas, atravessadas por demandas físicas e psicológicas radicalmente diferentes.
O coronel carrega no corpo as marcas do fim: a cegueira, a dependência, a aposentadoria forçada, o luto pela identidade que construiu ao longo da vida. Seu sofrimento não é apenas físico, é existencial. Ele perdeu não só a visão, mas o lugar que ocupava no mundo.
Há fases da vida em que o essencial não é avançar, mas não desistir, quando o sentido se apaga.
Perfume de Mulher habita exatamente esse território.
Charlie, por sua vez, vive o início da travessia adulta. Seu corpo é inteiro, suas possibilidades ainda estão abertas, mas o conflito já se impõe. Ele enfrenta demandas próprias da juventude: pertencimento, medo da exclusão e a difícil tarefa de sustentar valores em um ambiente que premia a adaptação moral.
Enquanto Frank luta contra o esvaziamento do sentido de viver, Charlie luta para não se perder antes mesmo de se constituir. Um está às voltas com a finitude; o outro, com a formação do caráter.
A convivência entre os dois não acontece em terreno neutro. É marcada por atritos, confrontos e silêncios incômodos. Frank testa Charlie, não por crueldade, mas para verificar se ainda existe alguém capaz de sustentar uma posição ética sem barganha. Charlie amadurece diante da intensidade emocional e da dor psíquica do coronel.
Há uma frase que atravessa o filme como metáfora de vida: “…no tango não existem erros. Se o passo falha, segue-se dançando.” Assim a vida não pede perfeição, pede presença. Sustentar o próprio eixo apesar do descompasso.
Talvez seja isso que Perfume de Mulher ainda nos ensine: integridade não é ausência de falhas, é recusa da rendição. Como no tango, não se trata de acertar todos os passos, mas de continuar presente na dança da vida.
Vera Helena Castanho é Psicoterapeuta Base Analítica



