O Brasil do Cuidado: o que aprendemos quando cuidamos dos nossos idosos (por Vera Helena Castanho)

Cuidar de alguém com 99 anos, lúcida e presente, é uma experiência que reorganiza a forma como enxergamos o país. Escrevo por experiência da realidade próxima. [...]

Cuidar de alguém com 99 anos, lúcida e presente, é uma experiência que reorganiza a forma como enxergamos o país. Escrevo por experiência da realidade próxima.

No cotidiano, percebemos um Brasil que não aparece nas estatísticas nem nas manchetes: aparece na rotina, nas necessidades concretas e nos silêncios de quem já viveu quase um século.

Mas, cuidado não é só sinônimo de fragilidade. Há vidas longas que surpreendem pela vitalidade, especialmente quando carregam histórias marcadas por desafios e por um sentido profundo de responsabilidade afetiva, como a missão assumida, há décadas, de seguir cuidando de um neto com síndrome de Down, hoje com 38 anos, que perdeu a mãe ainda garoto.

A convivência com uma idosa lúcida de quase cem anos revela, na prática, que é possível:

  • Manter autonomia real, com as fragilidades previsíveis e controladas;
  • Interessar-se pelas curiosidades do tempo presente;
  • Acompanhar notícias, inclusive as políticas, com humor e discernimento;
  • Navegar com naturalidade pela tecnologia, comunicando-se por vários canais;
  • Cuidar da saúde física e mental, praticando exercícios físicos;
  • Olhar o passado com saudade, mas sem lamento;
  • Jogar xadrez;
  • Cozinhar com prazer para os seus;
  • Reconstruir-se após perdas imensas, incluindo as de dois filhos adultos;
  • E, ainda, encontrar motivos para alegria, curiosidade e participação na vida.

Um perfil assim ilumina o debate sobre envelhecimento no Brasil. Mostra que, quando há presença, vínculo e dignidade, a velhice não precisa ser apagamento: pode ser potência.

Ao mesmo tempo, a realidade se impõe. As famílias sustentam, no privado, aquilo que o Estado não entrega no público. Onde faltam políticas, entra improviso. Onde falham serviços, entra presença. Há uma engenharia doméstica que só existe porque o amor se responsabiliza onde as instituições recuam.

O Brasil envelhece rápido, mas não envelhece bem. Essa verdade se revela na dificuldade de acesso, na burocracia cansativa, na precariedade de suporte. Quem cuida de perto sabe que o país exige mais das famílias do que oferece aos idosos.

Ainda assim, há um aprendizado essencial. O cuidado diário mostra que tempo, para quem depende de nós, significa atenção. Que força é constância. Que presença vale mais do que qualquer discurso sobre afeto. É no ritmo mais lento e nos gestos pequenos que entendemos o que realmente importa.

Nesse processo, o Brasil aparece de modo evidente: somos uma nação que ainda não construiu uma estrutura pública capaz de honrar a própria velhice. Mas também somos um país onde o cuidado, apesar de tudo, resiste. É ele que sustenta, muitas vezes sozinho, aquilo que falta do lado das instituições.

O cuidado revela o país, suas falhas, seus acertos, seus atrasos e sua potência. E quem vive essa experiência compreende que, entre o que não recebemos e o que oferecemos, existe um espaço onde a sociedade brasileira se mantém de pé.

É nesse intervalo, entre ausência institucional e presença humana, que o Brasil se mostra como ele é: frágil por fora, resistente por dentro.

Vera Helena Castanho é Psicoterapeuta Base Analítica

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