Linha de Neve (por Luís Giffoni) Apresentação do livro “Linha de Neve” de Luís Giffoni por Hugo Almeida

Linha de Neve acompanha dois jovens de Ipanema em sua busca por prazer e aventura ao longo da Cordilheira dos Andes e suas armadilhas [...]

Alguns e Todos

Um romance remete de imediato a viagens, imaginárias ou reais, do corpo ou da mente de pessoas errantes em busca de descobertas, encontros improváveis ou imprevisíveis. Sempre. Com este Linha de Neve o leitor tem em mãos um passaporte quente para uma jornada inesquecível. Não apenas por países andinos, em trilhas e escaladas arriscadas e outros perigos, mas sobretudo pela instável alma humana, seus sonhos e pesadelos, e pela atormentada vida contemporânea. Hedonistas em alto grau, sedentos de prazer a qualquer custo, Michel (“Michelosaurus desvairadus“; “um poeta, no sentido pejorativo que seu pai lhe dava”) e Soraya (“colega de bairro, de escola, de viagem, de tesão“) dividem com o amigo irlandês Mark (“matemático e remador“, vértice do triângulo amoroso) momentos febris de aventuras, venturas e desventuras, Loucas enrascadas, neste avassalador, denso, lírico romance. Que ninguém procure plena verosimilhança com a vida cotidiana, ainda que em parte a fonte seja a realidade.

Na literatura, o que se exige é plausibilidade com a história narrada, uma história que cative e convença o leitor. Em As históricas entrevistas da Paris Revier (Companhia das Letras, 1989), Gabriel Gar-cía Márquez (1927-2014) disse a Peter H. Stone (tradução de Cecília C. Bartalotti): “Em jornalismo, um único fato falso prejudica todo o trabalho. Já em ficção, um único fato verdadeiro dá legitimidade ao trabalho inteiro. Um romancista pode fazer qualquer coisa que queira, contanto que faça com que as pessoas acreditem“. Escritor experiente, de carreira consolidada e várias vezes premiado, Luís Giffoni sabe bem disso. A lição de García Márquez vale também para quem não cultua o realismo mágico.

Desde as primeiras linhas deste romance surpreendente, o escritor nos arrebata com as ricas e poéticas descrições de paisagens espaços por onde transitam os personagens, metidos em relações perigosas, em diversos campos. Quando o real e a imaginação se completam em harmonia, o resultado é arte. É o que este livro nos oferece. E surpresas. Muitas, inúmeras, incontáveis, a cada episódio e virada de página. “A arte é uma invenção, e seria ridículo julgar a aventura em nome da ordem“, escreveu Gatan Picon (1915-1976) em O escritor e sua sombra (tradução de Antônio Lázaro de Almeida Prado; Companhia Editora Nacional/Editora da USP, 1969). O crítico de arte e literatura francês completou: “Lemos as obras para amá-las, e não lemos indiferentemente a quaisquer obras: nada deveria prevalecer contra a realidade dessa experiência“. Mas ressaltou: “A obra de arte – e, de modo particular, a obra literária – não se nos impõe apenas como um objeto de fruição ou de conhecimento; oferece-se ela ao espírito como objeto de interrogação, de pesquisa, de perplexidade“.

Com notável versatilidade, Giffoni trabalha com segurança em vários registros e níveis narrativos, sempre com fluidez e apuro literário, seja nos diálogos precisos, enxutos, vivos, seja em trechos em primeira ou terceira pessoa de monólogos ou descrições primorosas, cenas cinematográficas. Tudo em comunhão com os episódios narrados e com a índole dos personagens, todos esféricos – contraditórios, complexos como seres humanos reais. Não apenas os protagonistas, mas também cada personagem considerado secundário, aquele segundo essencial que deixa pistas do percurso, passado ou próximo, dos principais. O leitor perceberá a maestria do romancista nessas passagens à primeira vista sem importância no enredo.

Para formar cidadãos críticos e independentes, difíceis de manipular, em permanente mobilização espiritual e com uma imaginação inquieta, nada melhor do que bons romances“, afirmou Mário Vargas Losa (1986-2025) como parte da resposta à pergunta do seu ensaio “É possível pensar o mundo moderno sem o romance?” (A cultura do romance, org. Franco Moretti, tradução de Denise Bottmann; Cosac Nait, 2009). Acrescentou: “Não a ciência, mas a literatura foi a primeira a examinar os abismos do fenômeno humano e a descobrir o apavorante potencial destrutivo e autodestrutivo que também o conforma“. O autor de A guerra do fim do mundo (1981) arrematou: “Incivilizado, bárbaros, órfão de sensibilidade e pobre de palavra, ignorante grave, alheio à paixão e ao erotismo, o mundo sem romances, esse pesadelo que procuro delinear, teria como traço principal o conformismo, a submissão generalizada dos seres humanos ao estabelecido. Também nesse sentido seria um mundo animal“.

De fato, ao longo de sua história, desde Dom Quixote (1605) de Miguel de Cervantes (1547-1616), o gênero romance é reconhecido como fonte de múltiplos saberes e funções. Ao mesmo tempo em que diverte, estimula a imaginação, conscientiza e enriquece o espírito, também ensina, como sublinhou Liang Qichao (1873-1929) em Vinbibgshi he jí, obra publicada em Xangai em 1916, citado por Henry Zhao em A cultura do romance: “Quando é impossível ensinar os clássicos aos leitores comuns de escassa cultura, ensinai-os por meio do romance; quando é impossível ensinar a historiografia, ensinai por meio do romance; quando é impossível ensinar a filosofia, ensinai por meio do romance; quando é impossível ensinar o direito, ensinai por meio do romance.

Ainda no monumental A cultura do romance, volume de mais de 1.100 páginas, Walter Siti afirma que a ficção pode exprimir uma verdade mais profunda do que a banal, “não a verdade dos fatos, mas a dos desejos“. Ele cita o Marquês de Sade (1740-1814) de Considerações sobre os romances, edição publicada em Milão em 1992: “o dever do historiador é o de mostrar-nos o homem como é ou como parece ser, o do romancista é mostrá-lo a nós ‘mas como pode vir a ser, como podem modifi-cá-lo o vício e as várias urgências das paixões’“.

Como o leitor verá, Luís Giftoni abriga tudo isso e muito mais em Linha de Neve. Sua clava é forte. Termo-chave: paixão. Suas origens, práticas e consequências. O romance vibra em alta-tensão, em conexões arriscadas no plano pessoal, na esfera pública, nas questões socioeconômicas (fica evidente a posição do protagonista), e em todos os meandros da existência humana, da ilusão de poder e da inescapável fragilidade humana. Nessa viagem alucinada, Michel, Soraya, que ele soletra “So-ra-y-a”, à maneira de Humbert Humbert, no romance Lolita (1955), de Vladimir Nabokov (1899-1977), e Mark descobrem quem são. Mas não se importam com isso. O que os liga é a urgência das paixões, a sede de sexo.

Espaço de controlada anarquia criativa, em que pessoas se cruzam em seus labirintos e desembocam sempre na dor, após fugazes momentos de prazer e alegria, romance não é palacio da moralidade. Expõe as mazelas do corpo e do espírito, mas com a garantia de fruição estética, senão não é arte. As palavras têm sexo, se atraem, nos lembra Machado de Assis (1939-1908); o casamento delas é o que o autor de Dom Casmurro chama de estilo (“O Cônego ou Metafísica do Estilo“, Várias Histórias, 1884).

Com um texto ágil, sem deixar de ser por vezes suntuoso, plástico, Luís Giffoni faz Linha de Neve transcorrer em estado febril. E não há dipirona nem beladona que façam baixar a temperatura acima de 40 graus de excitação a tecer a teia de desejos do trio de viajantes, e nada turba a delícia da leitura deste romance. Anima a história um permanente estado de êxtase e medo dos personagens, eros e thanatos lado a lado (“Acaso, gelo, rocha, céu, vales, precipícios, vida e morte. E inferno“), às vezes a mais de 6 mil metros de altitude (“o deleite das alturas“) em picos a 15 graus abaixo de zero, abismos a assombrar os destemidos turistas-alpinistas, ou em noitadas em hotéis de luxo ou precárias pousadas e suas ameaças latentes. Conhecem também um trajeto de Macondos, “onde o fantástico convivia com a realidade, um sem perturbar o outro

Numa situação de extremo risco na Bolívia, Michel descobre a or-gem da fortuna de seu pai (“Paz é bandido”, “fuja, agora”) que lhe proporciona intermináveis viagens por onde quiser, seja para estudar filosofia na Inglaterra ou nos Estados Unidos, ou vagabundear pelo mundo. Descobre ainda tenebrosos segredos da família. Seus guias, contudo, sao sempre os epicuristas. Ele não dá a mínima à lição ouvida num monastério budista no vale do Rio Indus: a virtude mora no caminho do meio. O que mais acontece com os libertinos Michel, Soraya (“pão e dor. Cárcere do prazer”) e Mark? Boa parte da história um prefácio não deve revelar. Não se pode tirar do leitor o sabor das descobertas. Mesmo porque um grande romance, sabem muito bem leitores de alta literatura, não se prende ao enredo, à história.

Como nos engana, em sua pobreza, o resumo – um tanto fro ou monótono – do enredo!”, lembra o narrador e personagem de A rainha dos cárceres da Grécia (1976), de Osman Lins (1924-1978). A opinião do personagem reflete a do autor: resumir um texto literário é “prática superticial, difunde e reanima a ideia corrente segundo a qual a história é o romance, não um de seus aspectos, dos que menos ilustram a arte de narrar“. Bons autores e leitores não se deixam enganar. Sabem que, além do enredo, integram as conexões secretas de um romance os personagens, o espaço e o tempo, a estrutura, a linguagem e suas figuras, o estilo.

Quem leu Os rios profundos (1958), de José. María Arguedas (1911-1969), talvez note alguma semelhança entre o belo início deste Linha de Neve (“tridente de pedra e gelo com seis mil e quinhentos metros de altura“) com um trecho do romance do escritor peruano (“três cumes nevados que se erguem sobre uma cadeia de montanhas de pedra negra“). Os dois romances nada têm em comum, fora o espaço e o horizonte. Conheça ou não o livro de Arguedas, Giffoni leu a mesma exuberante paisagem da Cordilheira dos Andes. Como aperitivo, um trecho do romance:

Michel estava tão imerso na paisagem que, ao saltar sobre o abismo, sedado pela beleza do nascente – e também pelo cansaço -, não percebeu o perigo da queda vertical com quase um quilômetro, terminada num emaranhado de calhaus pontiagudos. Sentia-se leve, capaz de flutuar. Acreditou que de fato voou. O voo que buscava. Não com a brevidade de um corpo que cai sobre a Vieira Souto, mas com a permanência de um pássaro que paira. Un pájaro. Kotori. Picaflor. Beija-flor. Que despreza a gravidade. Que se confunde com o espaço. Que se espalha na manhã. Que engole o horizonte. Que poderia ir ainda mais longe. Que ignorava o limite humano. Que virava ar. Que se incorporava ao mundo. Que era o mundo.”

Com a devida vênia (epa!), uma citação sem autoria segura. Acredito, contudo, que seja de algum livro, artigo ou entrevista (que não consegui localizar) do professor e crítico João Alexandre Barbosa (1937-2006). “Todo romance tem algumas páginas admiráveis. Alguns, todas.” O leitor há de concordar: este é o caso de Linha de Neve.

*Apresentação do livro por Hugo Almeida, Jornalista, Doutor em Literatura Brasileira pela USP, e Escritor, a convite de Luís Giffoni, que muito agradece ao Amigo.

Luis Giffoni é Escritor, Membro da Academia Mineira de Letras. Prêmio Jabuti

Livro: https://www.sineteeditora.com.br/linha-de-neve

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