Quando a Memória Se Desfaz, Mas a Vida Permanece

“Hoje estou meio desanimado. Tem dias que estou regando as plantas… e elas não estão lá.” [...]

Hoje estou meio desanimado. Tem dias que estou regando as plantas… e elas não estão lá.”

Foi assim que ele me recebeu, certa manhã. Um homem de 56 anos, profissional autônomo bem-sucedido, em Psicoterapia em Base Analítica, quando recebeu um diagnóstico que redesenha destinos: Alzheimer precoce.

A notícia não trouxe desespero, mas uma serena lucidez. Conversamos sobre a vida que muda, sobre os privilégios e também sobre a necessidade de aceitar e ressignificar. Ele dizia: “Ah Vera, o que me vale é o que está dentro de mim há muito tempo: as memórias afetivas que sustentam o meu presente.

O impacto de um diagnóstico assim, em idade ainda produtiva, não se limita ao indivíduo. Envolve família, médicos, psicólogos e outros profissionais. Exige um replanejamento de vida e de vínculos. Segundo a Alzheimer’s Disease International, mais de 55 milhões de pessoas no mundo vivem hoje com alguma forma de demência e esse número pode dobrar até 2050. O desafio se soma às desigualdades de acesso ao cuidado e à sobrecarga das famílias e do universo no entorno.

E, no entanto, em cada encontro terapêutico, havia clareza e maturidade.

As sessões retomadas nesta nova fase foram suaves, oportunas e sensíveis. Conversas adultas sobre a finitude humana, a autonomia possível, a dignidade como prioridade inquestionável. Ele dizia: “Não quero sucumbir. Comecei a enfrentar. Eu existo, eu estou aqui. Tenho conseguido dizer muitos ‘não’s.

Entre uma pausa e outra, a vida ganhava novas formas: a caneta, antes objeto banal, agora era símbolo. “Com o tempo comecei a acreditar que essa caneta tem outro sentido na minha vida… Estou ressignificando.”

Esse processo mostrou que o Alzheimer não apaga o ser humano, revela outras instâncias humanas.  A memória pode falhar, mas o afeto persiste. A lógica pode se desfazer, mas a dignidade permanece.

A pergunta que fica é menos sobre a doença e mais sobre nós:

O que fazemos com as nossas próprias memórias?

O que deixamos morrer e o que escolhemos cultivar?

Qual é o sentido da nossa existência?

Talvez, como esse ser fragilizado mentalmente e inesperadamente, no meio do seu caminho da vida, precisemos aprender a regar não apenas as plantas que vemos, mas também as invisíveis, aquelas que sustentam silenciosamente o sentido da vida.


Vera Helena Castanho é Psicoterapeuta em Base Analítica.

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