
O Projeto de Lei Geral do Licenciamento Ambiental, que ganhou da opinião pública a denominação do PL da Devastação, tem merecido uma saraivada de críticas pelos retrocessos que introduz neste importante instrumento da Política Ambiental Brasileira. Como um ator desse processo ao longo dos últimos 40 anos, não posso deixar de emitir minha opinião, ainda que sujeita às críticas de segmentos e setores da sociedade brasileira que têm visão distinta da minha, que acolho sempre com a humildade de quem tem uma fé inabalável na democracia e respeita o pluralismo político, que não se coaduna com o pensamento único.
Desde logo, não defendo o status quo, reconheço que o LA precisa ser aprimorado, mas sem se afastar do seu objetivo primordial de assegurar e promover a qualidade ambiental do país.
SINTESE DE RETROCESSOS A SEREM CONSIDERADOS
Nesse sentido, considero retrocessos: o esvaziamento das competências do CONAMA, o exagero das exceções que dispensam atividades efetiva e potencialmente poluidoras do escrutino do poder público, a LAC para empreendimentos de médio porte e médio potencial de impacto.
A Licença por Adesão e Compromisso pode ser adotada para empreendimentos de pequeno porte e pequeno potencial poluidor de impacto local, com anotação de responsabilidade técnica no Conselho Profissional competente, além de plena, total e irrevogável responsabilidade do empreendedor.
Nos casos em que for constatada que a avaliação dos impactos descrito no instrumento omite ou subdimensiona os danos, o órgão ambiental deve denunciar o proprietário do empreendimento e o responsável técnico ao MP competente e processá-los por falsidade ideológica, além de medidas complementares na esfera cívil e criminal.
Admitida a LAC para empreendimento de pequeno impacto, não é razoável adotá-la para os empreendimentos de médio porte e médio potencial poluidor, cuja capacidade de produzir danos não é comparável com o pequeno, aliás é uma comparação irresponsável.l
Por outro lado, com avanço das tecnologias de controle ambiental e monitoramento dos empreendimentos em tempo real, não faz mais sentido exigir licenciamento trifásico dessa categoria de atividade danosa ao meio ambiente. Uma licença de fase única ou bifásica, dependendo da complexidade do empreendimento, é suficiente para assegurar o cumprimento das normas e dos padrões de qualidade, desde que haja mecanismos eficientes de acompanhamento pós licença.
A VERDADEIRA CAUSA DA MOROSIDADE DO LICENCIAMENTO
IMPORTA salientar, que a grande justificativa, a bala de prata que sustenta a adoção do autolicenciamento e agora, no PL, a dispensa de licença de obras de infraestrutura de grande potencial poluidor e degradadora do meio ambiente é a incapacidade dos órgãos e das entidades ambientais das três esferas de governo de atender a demanda!
Ora, essa argumentação omite a causa principal, a verdadeira gênese do problema: O SUCATEAMENTO DO SISNAMA E DO SNGRH!
A incapacidade operacional dos órgãos, submetidos a um raquitismo institucional ultrajante, sem um orçamento e recursos humanos minimamente adequados, sem recursos financeiros, sem apoio logístico, politicamente tratados como instituições periféricas da estrutura de governo, está na origem da morosidade do licenciamento, embora não se possa deixar de considerar a necessidade do seu aperfeiçoamento.
Logo, uma vez diagnosticada a fragilidade institucional da gestão pública ambiental, a solução adotada não foi o seu fortalecimento, MAS A EXDRUXULA ALTERNATIVA DE ELIMINAR AS SUAS ATRIBUIÇÕES E COMPETÊNCIAS.
Com a estrutura atual dos órgãos e entidades ambientais, mesmo com a devastação das competências previstas no PL, a tão sonhada e decantada celeridade não virá para os empreendimentos que continuarão sendo licenciados, pelas razões já expostas.
Não sou adepto do Estado mastodôntico, mas na administração pública ambiental brasileira, para os que defendem o Estado mínimo, é necessário registrar que o que temos é um ESTADO RAQUÍTICO!
Como já ocorre hoje, mesmo com o licenciamento trifásico, o Sistema não tem a menor capacidade de fiscalizar as condicionantes impostas ao licenciamento. O que dizer então sobre o acompanhamento e fiscalização das LACs? A resposta é a inércia e a inação dos órgãos no pós-licença.
INOVAÇÕES IGNORADAS
Apresentado como um Projeto modernizante, o PL, além de retroceder, é absolutamente silente em relação às iniciativas verdadeiramente modernas, que são necessárias para que o licenciamento ambiental perca o caráter cartorial que o caracteriza na atualidade.
A esse respeito, diga-se que as primeiras versões do PL na Câmara dos Deputados, adotava, inteligentemente, a AAE – Avalição Ambiental Estratégica, que deveria ser parte obrigatória do planejamento governamental, mas que foi posteriormente abandonada.
Entre essas medidas, refiro-me primeiramente, à necessidade de introduzir no processo, mecanismos de avaliação de impacto ambiental ex-ante ao LA, quando se está decidindo fazer o empreendimento, principalmente na área da infraestrutura.
As grandes obras, as que produzem os maiores impactos, não são realizadas sem sofisticadas análises de viabilidade técnica e financeira, jamais são implantadas sem taxas de retorno que remunerem, com lucro, os recursos financeiros investidos.
Todavia, a variável ambiental não é sequer cogitada nessa fase inicial ou examinada de forma rasa, não fazendo parte dessa equação, INLCLUINDO as obras concedidas e financiadas pelo poder público, fazendo com que a taxa de retorno dos investimentos sejam apuradas sem levar em conta os custos ambientais na sua totalidade.
Nesse modelo em vigor, a avaliação dos impactos ambientais só irá aparecer no balcão do licenciamento, quando a decisão de fazer já foi tomada por quem pode fazê-lo, em se tratando de obras diretamente realizadas pelo Estado Nacional ou por ele concedidas.
Não por acaso, o LA tornou-se uma usina de crises, porque a comunidade que não teve nenhuma chance de participar do processo decisório que decidiu empreender a obra no seu início, só tem a chance 4 de participação durante o processo de licenciamento, em razão da transparência da política ambiental brasileira. Assim, todas as demandas e expectativa da sociedade recaem no processo de LA.
O LICENCIAMENTO AMBIENTAL NÃO PODE TUDO
Ocorre, que o Licenciamento Ambiental, tal como consagrado na legislação nacional, não tem o poder de decidir sobre a implantação dos empreendimentos. Essa decisão já foi tomada, quando a ANP outorgou a exploração de uma plataforma de petróleo, a ANEEL concedeu o direito de exploração de usina hidroelétrica ou de outras fontes, assim como as concessões de rodovias, ferrovias, hidrovias, redes de energia e telecomunicações já foram concedidas.
Cabe ao Licenciamento Ambiental fazer, com o rigor necessário, a Avaliação dos Impactos Ambientais, verificar se há impactos ocultos ou subdimensionados, estabelecer as medidas mitigadoras e compensatórias, entendendo a compensação como medida associada exclusivamente aos danos não mitigáveis do empreendimento, sem transformá-la em condicionantes que nada tem a ver com os danos causados, como ocorre atualmente.
QUANDO o custo das medidas mitigadoras, compensatórias e das condicionantes tornar o empreendimento inviável, O EMPREENDIMENTO TEM QUE SER CONSIDERADO INVIÁVEL, sob pena de viabilizá-lo, externalizando os custos e socializando os prejuízos ambientais com toda a sociedade, notadamente com as comunidades direta e indiretamente afetadas.
Neste caso e, somente neste caso, o LA pode contribuir para que uma obra não seja executada. Isto somente ocorrerá porque não tendo havido nenhuma AIA ex-ante, para mensurar os custos reais, com a inclusão do custo ambiental, o empreendimento não é SUSTENTÁVEL, fato que deveria ocorrer quando a decisão de o fazer foi tomada.
Ora, não sendo sustentável o empreendimento não pode ser licenciado, porque o papel da LA é, exatamente, o de evitar o DESENVOLVIMENTO PREDATÓRIO, a depleção dos recursos naturais, o que provoca um desenvolvimento autofágico e, por consequência, uma prosperidade falsa.
EIA/RIMA X PROJETO EXECUTIVO DOS EMPREEDIMENTOS
Na imensa maioria dos casos, o EIA/RIMA ou estudos análogos são elaborados com base nos projetos conceituais e básicos. Raramente, os Estudos de Impacto ambiental levam em conta o Projeto Executivo. Na verdade, o projeto executivo deveria incluir todas as medidas de proteção ambiental, que é deixada para a implementação das ações previstas nos estudos de impacto.
Não é por acaso, que as licenças ambientais das grandes obras contemplam uma miríade de condicionantes. Quanto maior a quantidade de condicionantes, mais evidente é a desconexão entre o EIA/RIMA e o Projeto Executivo do empreendimento, acarretando o descumprimento da licença e permanentes atritos entre o empreendedor, os interesses que ele representa e as instituições licenciadoras.
Não é raro o empreendedor procurar o órgão ou entidade licenciadora para solicitar que determinadas condicionantes não sejam implantadas, alegando falta de recursos financeiros, como se elas fossem descartáveis, um mero apêndice do projeto.
VINCULAÇÃO DA LA ÀS METAS DE QUALIDADE AMBIENTAL
Outra medida inovadora necessária para modernizar o LA ignorada pelo PL é a sua vinculação às metas de qualidade ambiental, tendo como referência espacial a Bacia Hidrográfica, a partir do corpo d’água no qual está localizado, valorizando o fator locacional. Os rios são o espelho do que ocorre no território, razão pela qual a dimensão territorial não pode estar excluída de um licenciamento moderno.
O Licenciamento por fonte, como ocorre tradicionalmente, sem considerar a realidade ambiental do território, não permite a avaliação dos impactos sinérgicos e cumulativos de um conjunto de empreendimentos licenciados isoladamente, cujos impactos positivos e negativos não podem ser mensurados.
É a licença pela licença que caracteriza o cartório, assim como a outorga de uso dos recursos hídricos pela outorga pura e simples, sem estabelecer metas de qualidade ambiental do ar, da água e do solo, no âmbito da bacia hidrográfica, referência espacial já estabelecida na Lei 69433/97, que também instituiu a classificação dos corpos d’água, de acordo com os usos preponderantes dos recursos hídricos.
Aliás, a Lei Nacional do Meio Ambiente, 6.938/81 instituiu como instrumento da política ambiental o estabelecimento de padrões de qualidade ambiental (inciso I, do artigo 9º) e o Relatório Anual de Qualidade Ambiental do país (inciso X, do mesmo artigo), que deveria ser publicado anualmente pelo IBAMA, mas que é historicamente ignorado.
O licenciamento ambiental é entre os instrumentos da PNMA, praticamente o único que foi universalizado, ainda que com as debilidades institucionais das instituições licenciadoras. Por isso, além do inadiável fortalecimento do SISNAMA, e efetividade do LA depende da eficácia dos outros instrumentos, particularmente do Zoneamento Ambiental.
ESVAZIAMENTO DO CONAMA E GOVERNANÇA DO LA.
A gestão ambiental brasileira nasceu, surpreendentemente moderna, em 1981, nos estertores da ditatura militar, graças à liderança e ao descortínio do Dr. Paulo Nogueira Neto.
À época, mesmo num regime de exceção, que dava os primeiros passos rumo à democratização do país, foi possível obter do Congresso Nacional, uma lei que criou o SISNAMA, levando em consideração a organização federativa do Estado brasileiro e INSTITUIU O CONAMA, assegurando uma governança colegiada e participativa, com poder deliberativo.
É axiomático dizer, que tínhamos um Congresso mais visionário na ditadura, do que o da legislatura atual, um parlamento, que na democracia reconquistada e consolidada com a Assembleia Nacional Constituinte, que nos legou a Constituição Federal de 1988, PERDEU A SINTONIA COM O ESPÍRITO DO TEMPO em que vivemos. Pode se dizer, que na área ambiental, estamos retornando os velhos e carcomidos paradigmas Pré-Conferência da Rio/92, ironicamente realizada no Brasil, sem esquecer de mencionar a COP30.
O CONAMA ganhou importância e tornou-se um espaço institucional fundamental do Estado brasileiro antes mesmo da Constituição de 1988, como instância colegiada, porque a fruição dos direitos difusos, 7 os direitos de última geração, como o meio ambiente ecologicamente equilibrado não se coaduna com o modelo tradicional de governança baseado nas decisões monolíticas e unilaterais da autoridade pública.
Daí a importância da gestão colegiada e participativa, que assegure à sociedade o poder de participação no processo decisório que trata de bens tutelados pelo Estado e de temas de interesse coletivo.
É inolvidável a importância do CONGRESSO NACIONAL como PODER LEGISLATIVO FEDERAL, mas a própria Constituição consagra, logo no seu Artigo 1º, Parágrafo Único, a DEMOCRACIA DIRETA, como fundamento da governança participativa.
Como a Lei 6938/81, que instituiu o CONAMA foi recepcionada pela Constituição de 1988, as atribuições do Conselho são CONSTITUCIONAIS, como decidiu o STF, por unanimidade, em matéria relatada na Corte pela ex-Ministra Rosa Weber, reposicionando o papel do Conselho, após sua mutilação no governo passado.
FEDERALISMO AMBIENTAL
A avaliação de diversos segmentos do setor produtivo de que o PL traz segurança jurídica, com o entendimento de que a Lei Geral padroniza o licenciamento no país é equivocada, porque a competência legislativa na matéria ambiental não é PRIVATIVA DA UNIÃO.
Na verdade, a competência para legislar sobre o assunto se insere no âmbito das COMPETÊNICAS CONCORRENTES previstas no Artigo 24 da CF. Isto é, as unidades federadas podem legislar concorrentemente com a União para estabelecer legislação especifica que atendam às suas peculiaridades, desde que as normas sejam mais restritivas do que a regra federal.
Os Estados vêm legislando, em muitos casos, para atenuar as normas federais, em afronta à Constituição, razão pela qual várias Leis Estaduais têm sido declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte, mas eles podem legislar para tornar o regramento mais restritivo, levando em conta as realidades estaduais.
Esse é um princípio fundante da Federação, visando adequar as normas legais às peculiaridades locais, diante das assimetrias do território, da distribuição dos Biomas e das suas características 8 fitogeográficas. Caso contrário, não seríamos uma República Federativa, mas uma República Unitária.
Não se pode ignorar que as competências dos entes federados, levando em consideração o FEDERALISMO COOPERATIVO estatuído pela CF, foi disciplinada pela Lei Complementar 140/11, hierarquicamente superior à Lei Geral, de caráter ordinário. A referida LC 140 estatuiu a Comissão Tripartite (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) como instância decisória para repartir e compartilhar as competências dos entes federados.
A Lei Complementar atribuiu aos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente o poder de definir as competências dos Municípios para além das competências originárias que lhes são próprias. Essa transferência de competências, lamentavelmente, tem sido feita de forma inadequada e, em muitos casos, irresponsavelmente.
É fundamental que os Municípios tenham Conselhos Municipais paritários, de natureza participativa e deliberativa para evitar o que vem ocorrendo: A PREFEITURIZAÇÃO do licenciamento e não a municipalização, que deve ser responsavelmente promovida.
Por outro lado, MUNICIPIOS que ainda destinam seus resíduos sólidos para LIXÕES, não tem autoridade moral para atuar na área do licenciamento.
Deve ser registrado que o país tem quase 2500 municípios com menos de dez mil habitantes, sendo 1253 deles com menos de cinco mil, ou seja, quase metade dos municípios não têm a menor capacidade institucional de promover um licenciamento minimamente satisfatório, por carências de toda natureza.
Para enfrentar essa realidade é fundamental criar arranjos institucionais intermunicipais, estimulando uma gestão integrada e compartilhada no território, adotando preferencialmente, uma ideia inovadora, que o PL também não considerou, mas que pode ser tratada no âmbito da Comissão Tripartite criada pela LC 140.
É relevante mencionar que o Projeto de Lei submetido à sansão do Presidente da República ignorou a Jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores, o que desautoriza o legislador e as entidades de 9 classes do setor produtivo arguir uma suposta segurança jurídica, que o PL não assegura.
Importa salientar as decisões recentes do STF, no julgamento que ficou conhecido como o PACOTE VERDE, contemplando sete ações de inconstitucionalidade de decisões adotadas no governo passado, e que teve como relatora a Ministra Carmem Lúcia, além da decisão específica sobre a composição e a participação da sociedade civil no CONOMA, relatada, como já mencionado, pela ex-Ministra Rosa Weber.
Entre as decisões prolatadas no Supremo, está a ADI 6808, que declarou a inconstitucionalidade da MP que permitia licença ambiental automática para empreendimentos de grau de risco médio e que impedia a solicitação de informações adicionais para instruir o processo de licenciamento.
Neste contexto, é previsível que o Presidente da República será levado, por razões de natureza constitucional, a vetar vários artigos do PL.
Nos parece recomendável que os vetos sejam negociados, republicanamente, com as lideranças do Congresso Nacional. Não havendo receptividade dos congressistas a uma negociação de alto nível e caso os vetos do Presidente sejam derrubados, o destino inevitável do Projeto de Lei será sua submissão ao crivo do STF.
José Carlos Carvalho, ex-Ministro do Meio Ambiente e ex-Secretário da SEMAD/MG. Foi Secretário Executivo e Presidente do CONAMA, do CNRH, do COMPAM/MG e do CERH/MG.