Presidencialismo malabarista (por Edson de Oliveira Nunes)

Este é um tempo acossado pela conjuntura. E como tem sido também possuído pela dicotomia entre anjos e demônios, [...]

Este é um tempo acossado pela conjuntura. E como tem sido também possuído pela dicotomia entre anjos e demônios, nós e eles, direita e esquerda, coisas assim, que tanto nos ocupam nos últimos tempos.

Dicotomias, como a de “esquerda vs direita” e outras tantas que encantam o pensamento social brasileiro são mais pobres do que nossa vida cultural.

Dicotomias constituem instrumento heurístico de grande utilidade porque nos oferecem imagens importantes para a compreensão de nós mesmos. Entre tantas, pensemos no que nos trouxe de compreensão a Belíndia, vital para nosso campo intelectual, assim como tantas outras, como a ideia de centralização vs descentralização, ordem pública vs ordem privada, a casa vs a rua, representação vs cooptação, moderno vs tradicional, sístole vs diástole e, agora, de novo, esquerda vs direita.

Como simplificações heurísticas, as dicotomias constituem relevante instrumento analítico. Argumento aqui, contudo, que a expectativa de hegemonia cultural, que habitava a agenda intelectual do partido vencedor das eleições desde 2002, está longe de acontecer no Brasil.

Argumento, enfim, que a sociedade brasileira, e sua política, não podem ser explicados por dicotomias heurísticas. O Brasil não é dicotômico.

A conjuntura tem razões profundas, históricas e diversas. Parece simples a quem olha, mas esconde transformações, permanências e tendências importantes. As grandes transformações são devidas a mudanças moleculares, invisíveis. Quando se observa uma grande transformação é porque ela já ocorreu, no meio da sociedade, antes de ser observada. Autores fundamentais nos ensinaram que o que vemos é o que já ocorreu no mundo microscópico.

A grande transformação, em verdade, é molecular. Para analisar a conjuntura brasileira, é necessário pensar nas transformações moleculares que administram o presente e o seu futuro.

É a combinação, mais que a dominância, hegemonia, de perspectivas e modos de fazer coisas, que nos tem caracterizado. Não é o debate esquerda vs. direita que nos define. Submeto que há uma tensão criativa, inevitável, entre traços de clientelismo, corporativismo, universalismo de procedimentos e insulamento burocrático, temas que já visitei em trabalhos passados. E os chamei de gramáticas políticas.

O presidencialismo brasileiro é malabarista. Claro, é chamado, competentemente, de presidencialismo de coalizão, mas vai além disso. Requer a compreensão profunda da sociedade brasileira, não só da face dos seus líderes políticos. O presidente do Brasil governa uma realidade que vai além dos partidos, administra uma sociedade complexa, governada por tendências distintas, por vezes compatíveis, por vezes contraditórias. Daí o malabarismo requerido.

O clientelismo requer relações pessoais, acumulação de poder e dinheiro, baseado em personalismo e trocas relevantes, um compadrio esclarecido, sem qualquer base legal. O corporativismo requer uma atenção aos benefícios legalmente esposados pelo legislativo. O insulamento burocrático foi uma estratégia, aperfeiçoada nos anos 50 do século passado, para retirar do compadrio ou do corporativismo aquilo que fosse fundamental para a política do momento. E o universalismo de procedimentos constitui uma voz daqueles que hoje são chamados de neoliberais ou, na academia, de produtivistas. Parece que hoje, quem está na rua anda mais nesta gramática do que em outras.

Onde será que mora, segundo esta visão desenhada, a crise atual? Na incompetência de reconhecer que o que nos caracteriza é um presidencialismo malabarista. Tais gramáticas políticas ainda não foram substituídas por uma gramática dominante. O Brasil não é somente corporativista, clientelista, burocraticamente insulado, nem pertence ao povo. Nem é de esquerda vs direita.

O presidente da República não administra apenas uma coalizão partidária, orienta um equilíbrio harmonioso entre diversos brasis, nem todos expressados na vida política diária. Ou bem o presidente é um analista da vida brasileira, ou será simples refém de uma agenda partidária. Lula sabe disso, estejamos seguros, como JK, por exemplo sabia.

O insulamento burocrático, por exemplo, invenção do passado, é vital para impedir que organizações essenciais para o país caiam nas mãos clientelistas e corporativistas. Assim, teria sido fundamental proteger a Petrobrás e os novos insulamentos burocráticos representados pelo mar de dinheiro dos fundos de pensão.

A virtude da tranquilidade política vem da combinação, da aceitação, virtuosa desta natureza complexa de nossa vida política. Cada governo que perdeu o mando sobre a combinação conheceu crises malditas.

O governo do PT vem errando na mão há bastante tempo. Sob o disfarce ideológico-partidário fez a mais deslavada política clientelista, no velho estilo brasileiro, distribuindo cargos, vantagens e benesses aos companheiros-amigos de clientela cativa. O erro não começou no governo Dilma, é anterior, vem do Lula, e assim por diante. Mas as transformações moleculares, que são invisíveis, demoram a aparecer. O sucesso de um governo, como a atenção à distribuição de renda, pode ser culpado pelos seus erros posteriores. O sucesso, na política, é o prenúncio do fracasso futuro porque a política não acaba. Não há sucesso permanente.

Distribuída a renda, o efeito político cessa. Seu sucesso de hoje é seu inimigo de amanhã. Os importantes ganhos políticos do governo, desde 2003 deixaram de ser alavanca. Só não podem mais ser retirados. Agora, fazem parte da natureza da vida brasileira. São ganhos permanentes. Mas não dão mais voto, no futuro. Viraram realidade.

Não há hegemonia cultural. Havia governos de sucesso em agendas fundamentais. Pensar que o Brasil é povoado por uma sociedade “de esquerda”, corporativista ou clientelista, ou “de direita”, é um erro fundamental. O Brasil não é isto ou aquilo. Sua presidência requer estadistas sábios. Não é coisa de amador.

Não se criou um novo Brasil, de direita e de esquerda, estamos sendo avisados. Os escândalos de corrupção quebraram o encantamento e, agora, podemos estar começando um círculo virtuosamente novo, no qual está gente “de esquerda” e “de direita”, se acomode a um país mais complexo. Uma nova conversa.


Edson de Oliveira Nunes é Ph.D. em Ciências Políticas pela Universidade de Berkeley. Foi Presidente do IBGE, Presidente do Conselho Nacional de Educação. É Professor Emérito da Universidade Candido Mendes. Autor

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