Mrs. Miniver e a Inteligência Artificial (por Elson Pimentel)

quando uso a IA para escrever, não estou delegando pensamento. Estou procurando uma forma de dizer que ressoe. [...]


O filme Mrs. Miniver (Rosa de Esperança), de 1942, ganhou seis Oscar, entre eles o de melhor filme e narra a história de habitantes de um subúrbio de Londres no início dos bombardeios da Segunda Guerra Mundial. A rosa Mrs. Miniver, cultivada por um jardineiro em homenagem a uma senhora local, é o símbolo da resiliência e da esperança diante das adversidades.

Em especial, o que me chamou a atenção, e por isso trago aqui, é a história não secreta, porém subentendida, da rosa. Ela é um produto da terra e das sementes e de seus processos químicos e biológicos. Sua forma e organização já estão dadas naturalmente. Entretanto, ela precisa do jardineiro que sonha, projeta, providencia e, como um demiurgo, junta, molda e lhe atribui uma finalidade. A rosa só atinge sua plenitude graças ao cuidado, à intenção e à sensibilidade humana. Enfim, ela é, ao mesmo tempo, dom da terra (mistério da vida) e obra de arte (um convite à contemplação).

Por um desses milagres da associação de ideias, a produção da rosa me fez pensar na inteligência artificial. Assim como no cultivo da flor, a IA é um produto do que nela depositamos: chips, energia, algoritmos, dados, critérios, linguagem, valores, ética. Sem orientação cuidadosa, pode gerar ruído, desvio ou até dano. Se programada com propósito e responsabilidade, pode florescer em algo útil, belo ou até transformador. Trata-se de uma ideia essencial: a tecnologia não é neutra, nem inerentemente boa ou má. Como em um jardim, depende de quem sonha, planta, rega e poda. É, ao mesmo tempo, um mistério da máquina e um convite à análise e auditoria.

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Até aqui, falei do mundo concreto, em que associei um objeto natural, a rosa, a um artefato humano, a inteligência artificial. E vimos que há vários pontos em que eles se assemelham. Mas existe uma outra dimensão ainda mais delicada, em que esse paralelo também ressoa: o mundo simbólico, aquele do significado que damos às coisas e às relações humanas, onde gestos e lembranças ganham forma.

A rosa Mrs. Miniver não é apenas uma flor. É um nome dado com carinho, um gesto silencioso de reconhecimento. Em plena guerra, ela não muda o curso dos bombardeios, mas altera o modo como duas pessoas se veem e se relacionam com o que resta de civilização.

Aqui entra uma contribuição importante de Robert Nozick, em The Nature of Rationality (1993): a de que nossas ações carregam valor simbólico, um significado que vai além de suas consequências imediatas. Para ele, certos gestos, palavras ou escolhas funcionam como “focos” que dão forma à nossa racionalidade prática, ajudando- nos a agir com coerência, dignidade ou propósito, mesmo quando o resultado é incerto.

Penso nisso quando uso a inteligência artificial. Estou buscando uma forma de dizer algo difícil: uma frase de consolo, uma explicação clara, uma proposta de cuidado. A resposta que recebo não é um fim em si, é um intermediário simbólico, como a rosa. Não age por si, mas me permite agir de um certo modo: mais claro, mais atento, às vezes mais humano.

Assim como a rosa transmite valor por meio de um gesto (oferecê-la), de uma palavra (“esta é a rosa Mrs. Miniver”) ou até de um silêncio (olhá-la juntos), a IA transmite valor pelos textos que ajuda a formar. O que importa não é a “inteligência” da máquina, mas o que faço com o que ela me devolve e o que isso revela sobre minhas intenções.

Pixinguinha compõe Rosa como quem nomeia um sentimento que não cabe em prosa. Dorival Caymmi canta “Das rosas” como uma promessa de amor e fidelidade. Geir Campos sonha com uma palavra tão clara que “ao dizer: —rosa! todos soubessem o que haviam de pensar…”. Em todos esses casos, a flor não é sujeito da ação, mas ponto de encontro entre quem diz e quem recebe.

De modo semelhante, quando uso a IA para escrever, não estou delegando pensamento. Estou procurando uma forma de dizer que ressoe. E o que sai dela só ganha valor simbólico quando eu o assumo, ajusto, ofereço. A máquina não sabe o que é luto, legado ou ternura.

Mas, se eu souber, posso usá-la para tornar visível o que já carrego.

Por isso, o cuidado necessário não está só na programação da IA, mas no modo como a invocamos. Cada pergunta que fazemos a ela é, na verdade, uma escolha sobre o tipo de mundo que queremos habitar: um mundo de respostas rápidas, ou de palavras que cuidam? De textos que escondem, ou que revelam? A rosa não escolhe seu significado, nós o damos a cada vez que a nomeamos. Com a IA é igual: seu valor simbólico nasce do uso que fazemos dela, e do que esse uso diz sobre as nossas prioridades.

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A rosa Mrs. Miniver floresceu em plena guerra, mas não falava de canhões. Falava de civilização, daquilo que se preserva mesmo quando tudo desaba. Hoje, em meio a ruídos, pressa e distração, talvez a inteligência artificial possa nos ajudar a dizer, de novo, algo parecido. Não porque ela entenda, mas porque, como o jardineiro, ainda queremos nomear e cultivar aquilo que há de humano em nós.

*A versão final deste artigo contou com apoio da Inteligência Artificial

Elson Luiz de Almeida Pimentel
Mestre em Filosofia pela UFMG
Autor de Dilema do Prisioneiro: da Teoria dos Jogos à Ética


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