
Tenho pensado na prática da gratidão nos dias atuais. Não me refiro ao sentimento automático de um agradecimento, à simples expressão da palavra obrigado ou a um gesto social corriqueiro. Falo da gratidão como escolha e da sua profunda complexidade. Refiro-me à gratidão expressa como um gesto sublime nas relações humanas.
Uma experiência consciente da presença viva de quem agradece.
Gratidão é, antes de tudo, um ato de lucidez e humanidade.
A gratidão verdadeira nasce da capacidade de enxergar a realidade do outro, que é diferente da minha, em sua amplitude e essência.
Considera o humano em suas contradições e desafios, nas fragilidades da visão lógica, superficial e imediatista, e nos sentimentos conturbados com os quais convivemos em nossos mundos atuais, diversificados, confusos e atropelados.
Refere-se às diferenças dos impulsos internos humanos e sensibilidades em expressar gratidão na vida familiar, entre amigos, ou seja, no mundo afetivo mais íntimo e próximo.
E nas relações humanas do mundo de convivência mais externo e distante afetivamente, ainda que frequentes e diárias, especialmente quando tratamos das relações de trabalho, onde existem inúmeros fatores humanos complexos de risco.
Falar de gratidão genuína é reconhecer o que resiste e que, ainda assim, merece ser valorizado.
Ser lúcido é, muitas vezes, desconfortável. Exige admitir as imperfeições do mundo e as próprias, as injustiças persistentes, as perdas irreparáveis. Reconhecer que nem tudo está sob nosso controle e que o sofrimento é parte inseparável da existência.
O sofrimento não é apenas dor a ser evitada, mas um espaço onde se revela o reconhecimento do outro e de si mesmo.
Nesse lugar, a gratidão surge como gesto ético, não um alívio para as feridas, mas uma resposta ativa ao que recebemos, uma maneira de acolher a presença do outro, mesmo na vulnerabilidade.
Posso citar como exemplo uma experiência real de uma família bem-intencionada que realizava reuniões semanais, onde aconteciam possíveis pedidos de desculpas e expressões de gratidão, como tentativa de sanar os mal-estares e recuperar vínculos afetivos.
Podemos entender que, na prática, essas trocas em família representavam, muitas vezes, apenas alívios para se sentirem perdoados e agradecidos. O desejo de reatar os vínculos era verdadeiro, mas o formato do processo distanciava os membros, enquanto a culpa e a raiva silenciosa se intensificavam, criando barreiras psíquicas que, com o tempo, se tornariam irrecuperáveis, podendo levá-los à destruição das relações familiares.
A filosofia ética do cuidado nos lembra que a verdadeira responsabilidade nasce do reconhecimento da vulnerabilidade e da interdependência.
A gratidão, nessa perspectiva, é um ato de atenção e respeito genuínos para com o outro, uma forma de acolher e valorizar a fragilidade que compartilhamos enquanto seres relacionais.
Na maturidade das relações, a experiência nos convida à sabedoria do despojamento, ou seja, o desapego honesto das expectativas e da ilusão de controle.
O despojamento não significa renúncia apática, mas o reconhecimento sereno do que é efêmero, abrindo espaço para a aceitação do presente com seus limites e abundâncias.
Nesse caminho, a gratidão se torna um exercício cotidiano de consciência plena, reconhecer sem apego, agradecer sem exigir retorno, acolher sem resistência.
É a prática do viver a maturidade da atenção viva nas relações humanas, discernindo e apreciando, naturalmente e sem manejos, a essencialidade e o sentido da vida.
Assim, a gratidão lúcida não nega as dores do mundo. Ela as atravessa e encontra, no reconhecimento ético e no despojamento da maturidade, a força para seguir adiante, não como gesto vazio ou corriqueiro, mas como experiência profunda de presença, responsabilidade e liberdade.
Vera Helena Castanho é Psicoterapeuta em Base Analítica.