
Ninguém recebeu um manual.
Não teve debate público, audiência, cartilha ou campanha educativa.
Um dia, simplesmente apareceu um botão novo na tela, e as pessoas começaram a usar.
Baixa o aplicativo, clica ali.
Pergunta qualquer coisa.
Adota como verdade e segue a vida.
Em poucos meses, a IA entrou no cotidiano sem muita cerimônia, sem perguntar muito, sem ler os termos*, sem entender direito como funciona.
*(fale a verdade, você lê os termos de tudo que concorda?)
Tem gente usando como psicanalista, como médico.
Gente pedindo orientação jurídica (eu mesmo).
Gente perguntando o que pode dar de comida para o cachorro.
Para o filho. Para o sogro.
Tem empresário colocando segredos da firma e pedindo pra “dar uma melhorada na política de vendas”.
Tem estudante usando pra estudar, tem também dicas para colar.
Tem até gente usando pra trabalhar melhor.
E tem gente usando só pra conversar.
Tudo isso no mesmo aplicativo. Na versão gratuita.
O mais curioso não é o uso em si, é a naturalidade com que isso aconteceu.
Não houve uma decisão consciente do tipo “vou delegar meu julgamento para uma máquina”.
As pessoas apenas começaram a perguntar.
E quando a resposta veio rápida, clara e aparentemente convincente, aceitaram.
Aqui entra um ponto importante, e pouco discutido.
Modelos de linguagem são excelentes produtores de lero-lero.
Um lero-lero bem escrito, fluido, organizado, confiante, persuasivo.
Eles não “sabem”. Eles soam como quem sabe.
E não é mágica.
Não é um ser pensante escondido do outro lado da tela.
É Matemática. Estatística. Probabilidade.
É “apenas” um modelo preditivo treinado para devolver a próxima palavra mais plausível estatisticamente, dentro de um contexto.
E isso é poderoso.
Porque no cotidiano, rapidez + boa forma + segurança no tom viram critério de verdade.
Não porque as pessoas sejam ingênuas, mas porque o mundo anda rápido demais para duvidar de tudo o tempo todo.
A IA chegou antes da consciência.
E aqui entra uma característica muito nossa: o brasileiro testa:
Vai usando. Vê no que dá.
Se funcionar, incorpora.
Se der ruim, reclama depois.
Em boa parte dos casos, isso é ótimo.
Tem gente usando IA de forma responsável, crítica, criativa. Tem muita gente boa fazendo coisa boa, inclusive gente tentando disseminar o uso correto da IA, e isso é muito positivo.
Mas tem também o outro lado, mais silencioso, mais cotidiano, problemático.
Pouca gente se pergunta como aquilo funciona, até onde pode ir ou onde não deveria ser usado.
Não por irresponsabilidade, por hábito.
A resposta vem. Parece boa.
E seguimos.
Talvez aí esteja o ponto mais relevante dessa história toda:
O mais importante não são as respostas que a IA entrega.
É a qualidade das perguntas que fazemos, e a consciência dos limites do que ela pode devolver.
Perguntar bem exige entender minimamente o que está do outro lado. Exige saber que não é um juiz, nem um médico, nem um terapeuta, nem um oráculo.
Exige lembrar que ela não decide, ela sugere.
Talvez o impacto mais interessante da IA não esteja nos grandes debates sobre o futuro do trabalho ou no fim da humanidade.
Talvez esteja nesse uso banal, cotidiano, quase invisível.
Quando deixamos de perceber quando estamos pensando e quando estamos apenas validando um texto bem escrito.
Não é um alerta. Não é um manifesto.
É só uma observação.
A tecnologia chegou.
Todo mundo começou a usar.
E foi ficando.
A pergunta que devemos fazer é:
“Em que momento vamos parar para entender o que estamos delegando, antes que isso vire apenas mais um hábito automático?”
Daniel Branco
Ser humano, Economista
Empreendedor e Mentor
Especialista em IA Aplicada



