A delicadeza silenciosa (por Vera Helena Castanho)

A delicadeza é uma forma de inteligência emocional: a capacidade de reconhecer o outro sem se apagar, de oferecer escuta em vez de reação, presença em vez de espetáculo..[...]

“A delicadeza é a forma mais rara de coragem.” (Mario Quintana)

Entre o barulho e o desamparo, a força sutil que ainda nos humaniza.

O tema deste texto nasceu de experiências clínicas. Encontros, silêncios, pausas e pequenas epifanias que revelam o quanto a delicadeza ainda é uma força vital, mesmo quando o mundo parece desabar.

Cada sessão trouxe, em gestos mínimos, a resistência do humano diante da pressa, a tentativa de sustentar vínculos em meio ao ruído.

Foi dessa escuta, e do que ela desperta, que me veio à mente a necessidade de pensar a delicadeza como eixo de sobrevivência psíquica e social.

Vivemos em tempos em que o ruído virou trilha sonora.

Tudo parece urgente, inflamado, competitivo.

As redes sociais transformaram o diálogo em duelo, a opinião em arma e o silêncio em suspeita.

No meio desse barulho, a delicadeza soa quase anacrônica, mas talvez seja justamente ela o que ainda nos salva do colapso.

A delicadeza é uma forma de inteligência emocional: a capacidade de reconhecer o outro sem se apagar, de oferecer escuta em vez de reação, presença em vez de espetáculo.

Ela nasce do amadurecimento afetivo que permite sustentar a frustração, lidar com o diferente, cuidar sem dominar.

Donald Winnicott, psicanalista britânico, nos ensinou que é no “ambiente suficientemente bom”, aquele espaço emocional onde há presença, sensibilidade e sustentação, que o ser humano aprende a ser real.

É nesse ambiente que a delicadeza encontra suas raízes: não como fraqueza, mas como a força que permite existir e deixar existir.

Quando alguém é acolhido sem ser invadido, ouvido sem ser consertado, compreendido sem ser julgado, nasce uma experiência psíquica de segurança.

E é dessa segurança que brota a liberdade de criar, brincar e amar.

Mas esse espaço rareia.

A sociedade contemporânea, atravessada por desigualdades, pressões econômicas e excesso de estímulos, reforça o ego endurecido, a defesa constante, o narcisismo da sobrevivência.

A brutalidade se disfarça de força e a empatia é confundida com fraqueza.

Ser delicado passou a exigir coragem, quase heroísmo.

Nos consultórios, nas escolas, nas ruas, vemos o reflexo disso: pessoas cansadas, emocionalmente desidratadas, reagindo por impulso.

A agressividade cotidiana é, muitas vezes, a linguagem de um desamparo antigo.

A ironia é uma couraça, o cinismo, um pedido disfarçado de ajuda.

A delicadeza, então, não é um gesto suave, é um ato subversivo.

É o retorno do cuidado num tempo em que o descuido virou norma.

É a recusa em transformar o outro em inimigo.

É o exercício de humanidade que não cabe em slogans nem em algoritmos.

Talvez o caos da vida atual não precise de mais força, mas de outra qualidade de força: a força sensível.

Aquela que acolhe sem se curvar, que pensa antes de ferir, que constrói vínculos onde o ódio quer muros.

A delicadeza, afinal, não é o oposto da dureza, é o que nos impede de nos tornarmos pedra.

E se há um gesto realmente revolucionário hoje, é esse: seguir em atenção à própria delicadeza em meio ao barulho.

Porque onde há delicadeza, há humanidade possível.


Vera Helena Castanho é Psicoterapeuta em Base Analítica.

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