A Crônica e a vida (por Lindolfo Paoliello)

o coração do cronista é um sismógrafo a registrar abalos quase sempre antes que outros os percebam. [...]

Leio uma antiga entrevista de Rubem Braga em que ele afirmava que a crônica estava acabando no Brasil. Aqui, dois comentários. Foi uma entrevista telefônica, imagino que interrompendo algum afazer do cronista em casa, ocasionando uma natural vontade de responder logo para livrar-se do entrevistador. Acostumado a fazer e dar entrevistas, sei quando o entrevistado responde com convicção a uma pergunta e quando ele é induzido a concordar com o repórter, ou por habilidade deste, ou mesmo por um certo tédio. Acho que o que concorreu para a resposta foi o tédio do cronista:

A crônica está acabando no Brasil?

Acho que sim…

Imagino o entrevistado bocejando ao fazer seu comentário seguinte: “Os autores ficaram mais personalistas e fofoqueiros”.

Rubem Braga foi o maior cronista brasileiro. Nessa posição torna-se com certeza o melhor do mundo, já que não se tem notícia de outro país onde esse gênero literário tenha sido tão cultivado e se tenha aprimorado tanto, a ponto de um dos melhores escritores contemporâneos em língua portuguesa, isto é, o próprio Braga, ter-se dado o luxo de só escrever crônicas. Ele era muito bom. Sabia, como ninguém, dar a um fato banal a transcendência da poesia; está em Rubem Braga a fronteira entre a prosa brasileira clássica e a moderna, daí se observar em sua obra aquilo que, na arte renascentista, alguém chamou de “contenção da matéria” e que, aqui, eu chamaria de “contenção do verbo”. A proporção, o equilíbrio, a simplicidade fazem de Rubem Braga, efetivamente, um grande escritor, um excelente cronista. Mas…

Mas prefiro atribuir ao tédio do cronista e não a uma observação, para valer, sobre aquele momento literário, sua aceitação de que a crônica brasileira estava morrendo.

Ocorre que o cronista é uma figura barroca, permanentemente ansioso de alcançar as estrelas e, no entanto, tragicamente preso ao chão. Gostaria de ser o poeta mais transcendente, mas seu compromisso com o seu tempo não lhe permite libertar-se de sua missão de porta-voz do cotidiano. Sendo assim, a crônica retrata o tempo, e o coração do cronista é um sismógrafo a registrar abalos quase sempre antes que outros os percebam.

A crônica não está morrendo, os tempos líricos é que se foram. O próprio Braga, ao comentar naquela entrevista a reedição de A Cidade e a Roça, sob o novo título de O Verão e as Mulheres, afirma: “essas crônicas são conversas douradas dos anos 50”.

Como os tempos já não são dourados, adapta-se a eles a crônica. Affonso Romano de Sant’Anna disse-me certa vez que achava inconcebível pegar-se um livro de crônicas e não se conseguir saber em que ano e em que lugar o cronista escrevia. E complementou: “Um fato, quando abordado por um cronista, já deve vir com a voltagem muito maior do que quando era simples notícia”.

“Reação íntima ante o espetáculo da vida”, a crônica é isso aí, e assim são os cronistas. Fica o dilema entre a transcendência e o circunstante. E eu, que escrevi livros nos quais alguém descobriu “um forte conteúdo lírico”, fico pensando onde fui buscar tanto lirismo. Que coisa complicada é a vida.


Lindolfo Paoliello é cronista, autor de O País das Gambiarras, Nosso Alegre Gurufim e A Rebelião das Mal-Amadas.