O homem moderno e o silêncio que ele não sabe ouvir (Vera Helena Castanho)

Há algo no homem moderno que não aparece à primeira vista. [...]

Há algo no homem moderno que não aparece à primeira vista.

Ele se move rápido, fala rápido, decide rápido.

Mas, por dentro, a velocidade esbarra em um movimento mais lento, uma propriedade íntima que precisa de pausa para existir.

Na clínica, encontro esse descompasso todos os dias.

As pessoas chegam cansadas de uma fadiga que não é física, irritadas sem saber o porquê, confusas diante da própria angústia ou tomadas por um vazio que não combina com a vida plena que exibem ao mundo.

Acreditam que isso é parte da época em que vivemos.

E é.

Mas é também um pedido discreto do próprio psiquismo:

“me deixe respirar.”

O curioso é que o homem moderno não percebe suas defesas.

Acha que a hiper produtividade é força.

Acha que a pressa é eficiência.

Acha que a indiferença o protege.

Acha que o cansaço permanente é sinal de que está indo bem.

Mal imagina que tudo isso são modos de sobreviver ao excesso a que se sujeita, sem aceitar ou reconhecer o prejuízo à própria vida.

Somos feitos para sentir e não apenas para responder ou reagir.

Mas o mundo pede respostas antes de pedir sentido.

Pede presença antes de permitir presença interna.

Pede que a pessoa funcione, mesmo quando está se desmoronando por dentro.

Inspirada em conversas com amigos, lembro que Simmel — sociólogo-filósofo alemão, estudioso das formas de interação social e da experiência subjetiva na modernidade, contemporâneo de Freud — já dizia que “a intensidade da vida moderna não permite que tudo seja sentido profundamente.”

E talvez seja isso que hoje vejo com mais clareza: vidas aceleradas por fora e silenciosamente desordenadas por dentro.

A irritação, o vazio, a angústia, a urgência. Nada disso é falha pessoal.

Na perspectiva que escrevo aqui, são expressões do psiquismo pedindo ar: a tão atual falta da saúde mental.

Freud, ainda na prática médica, percebeu algo que permanece atual:

quando a dor não encontra palavras, ela encontra caminhos, que quase sempre passam primeiro pelo corpo. São os sintomas.

Talvez por isso tantos chegam à terapia sem saber explicar o que dói.

Sentem apenas que a vida está fora de controle, mesmo possuindo tantas competências reconhecidas e tantas tentativas de cura que não surtiram efeito.

Quando alguém finalmente chega à terapia, muitas vezes chega sem nome para o que sente.

Mas sabe que algo está e segue desalinhado.

Percebe que perdeu o ritmo de si.

E é ali, no silêncio e na investigação sutil e delicada das profundezas que a abordagem analítica permite que um outro tempo comece a existir.

Um tempo que não exige, mas acolhe. Um tempo que escuta. Um tempo em que o movimento silencioso da dor começa a se transformar, a ser compreendido e essa dor deixa de existir.

Um tempo em que o sujeito reaprende a se escutar e descobre que a vida interna não estava perdida, apenas soterrada.

Em uma boa metáfora: na dor profunda, as placas tectônicas estão em fortes movimentos. Entendo-os como as nossas dores internas em movimentos descontrolados.

Com o tempo terapêutico, a dor vai se acomodando, se esvai porque encontra novos lugares de acomodação. As placas tectônicas se acomodaram.

E a vida segue melhor.

O universo emocional com o tempo adquire a competência da autoanálise e segue bem, ajustada e reconhecendo por si mesmo, pouco a pouco, como acomodar suas próprias dores.

Não existe vida sem dor, mas é possível manejá-la, a partir da própria experiência de auto presença para a auto análise.

Escuto com frequência:

“Vera, o que está acontecendo comigo? Parece mágica!”

E a resposta é simples: de mágica não há nada.

Há trabalho e muito trabalho terapêutico, presença e continuidade.

Repito o que ouvi do meu analista (HM) há muito tempo atrás:

“De mágica não tem nada, Vera, o que tem, e muito, é muito trabalho.”

Costumo pensar que a clínica é o lugar onde o homem moderno reaprende o gesto mais simples: o de habitar a própria experiência.

Não se trata de corrigir o que está errado, mas de recuperar o que ficou esquecido.

O sujeito não precisa de mais performance. Precisa de mais contorno.

Não precisa de força desmedida. Precisa reabrir seu espaço interno.

Porque, no fim, não é apenas o mundo que adoece, é a distância que criamos entre quem somos e aquilo que, sem perceber, deixamos que a vida nos obrigue a ser.

Esse é um movimento humano contínuo e cabe a cada um amadurecer em sua autoanálise e reconhecer os ajustes que a existência solicita.

Talvez caiba aqui recordar Simmel mais uma vez, quase como um sussurro sobre o nosso tempo:

“A vida moderna exige do ser humano uma proteção contra o ritmo desenfreado e o choque incessante.”

Que possamos encontrar essa proteção não no endurecimento, mas na coragem silenciosa de voltar a sentir. E de voltarmos a nossa atenção e auto cuidado em nossos movimentos tectônicos.


Vera Helena Castanho é Psicoterapeuta em Base Analítica.

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