Miolatria (por Luis Giffoni)

de tanta malhação, transformaram até o cérebro em músculo. [...]

Eles se exibem por toda a parte e utilizam um jargão universal na comunicação, mistura de bula de remédio com ingredientes de bruxaria, cujo poder se revela através das palavras proteico e energético. Devem ter sido doentes, pois se consideram sarados.

Temem recaídas, já que tudo fazem em nome da saúde. Frequentam um único templo, a academia, de manhã, à tarde, à noite e de madrugada, até quinze vezes por semana. Insatisfeitos com a pouca duração do culto, porém devotos empedernidos, montam em casa altares para a adoração nas horas de folga. Reproduzem e sofisticam instrumentos de tortura medieval, uma parafernália de rodas, amarras, cordas, engrenagens, correntes, pesos, aos quais expõem braços, pernas e abdome até o limite da resistência.

Acostumados à dor, condenam ao fracasso os Torquemadas de plantão, mas levam ao delírio os fãs de Sade. Juram que nada têm a ver com Masoch. Mas dizem “no pain, no gain”. Consomem dietas especiais. Se os sumos pontífices recomendam uma pitada de merda sobre o hercúleo coquetel de guaraná, açaí, mel e outras pajelanças, eles não hesitam, comem e sentem na hora os efeitos benéficos da receita.

Não parecem homo tampouco hétero, pois amam sobretudo a si mesmos. E como se amam! Gastam horas à frente do espelho, suspirando para o próprio corpo, curtindo cada milímetro de músculo adquirido. Mesmo quando desenvolvem peitos fellinianos e mal equilibrados sobre os cambitos, julgam-se lindos.

Apalpam-se uns aos outros, esfregam-se, medem-se os dotes com despudor. Alucinados com bíceps e tríceps, há quem os chame de quadrúpedes. Diante de costureiros e peitorais avantajados, quase desmaiam. Fortíssimos, dão para excelentes leões de chácara. Por favor, não confunda dar com seu sentido chulo.  Metidos a valentes, apreciam brigas de rua e alardeiam sua capacidade de partir, com um único murro, qualquer cabeça, menos a própria, é claro, inexistente.

Melhor dizendo, existe cabeça sim, porém com dois sérios problemas. Primeiro, de tanta malhação, transformaram até o cérebro em músculo. Em segundo lugar, desenvolveram uma preocupação patológica com seu grau de muscularidade. Posto de outra forma, ficaram lelés da cuca. Ou seria normal uma pessoa sair de casa às cinco da manhã, correr dez quilômetros, enfrentar os ferros de uma academia até as oito, voar para o serviço, depois do expediente fazer hora extra na esteira e, em casa, distrair-se com barras e halteres até alta madrugada?

Como se não bastasse, os Rambos miram-se no espelho e acham-se fracotes. Horror dos horrores! De acordo com as pesquisas, esse comportamento está mais espalhado que dengue. Há por aí muito hipertrofiado sofrendo, porque conseguiu, nos braços, perímetro de apenas meio metro. Em sua edição mais recente, o DSM, o manual de diagnóstico e estatística de desordens mentais, listou mais de quatrocentas doenças psiquiátricas. Isso mesmo, mais de quatrocentas, daí minha suspeita de que a psiquiatria tenha mania de doença. É impossível que alguém escape de uma classificação no DSM. Aliás, uma pessoa sadia deve se encaixar em algumas dúzias.

Agora, com a inclusão da miolatria – a adoração por músculos – serão quatrocentas e muitas. Vejo uma boa notícia nessa entronização: a miolatria e a psiquiatria formam o par perfeito, síntese do princípio de que a virtude está na média. Uma tem mania de saúde; a outra, de doença. Falta marcar a data do casório. Aposto que serão felizes para sempre.

Luis Giffoni é Escritor, Membro da Academia Mineira de Letras. Prêmio Jabuti

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