Bem-me-quer, malmequer (por Elson Pimentel)

A leitura de Souki ecoa, ainda que não enuncie, uma antiga perplexidade: como é possível o mal num mundo em que Deus está presente? Já minha investigação envolvia uma inquietação oposta, secular e igualmente radical: num mundo sem Deus, como é possível o bem? [...]


Ao cobrir o julgamento de Adolf Eichmann em 1961, Hannah Arendt lembrou-se de Agostinho: o mal não vem de fora, ele é fruto do mau uso da liberdade humana. Ela reinterpretou essa ideia à luz do século XX: o mal contemporâneo, o mal banal, não emerge da malícia deliberada, mas da recusa em pensar, da obediência cega a normas e burocracias. Pode ser cometido por pessoas comuns, sem traços de monstruosidade. Nádia Souki, em “Hannah Arendt e a Banalidade do Mal” (UFMG, 1998), explorou esse fenômeno com profundidade.

Arendt não diz que a razão está ausente no agente do mal, apenas desativada. Nesse vazio floresce a banalidade do mal, a incapacidade de refletir sobre as consequências dos próprios atos e a negação da responsabilidade individual. Essa ideia é essencial: durante seu julgamento, Eichmann, responsável pela logística do genocídio nazista, insistiu que “cumpria ordens”. Não era um sádico, mas um burocrata eficiente, um homem comum.

Esse diagnóstico não pertence só a um passado autoritário. Hoje ele se repete em formas menos extremas, porém igualmente reveladoras: o usuário de redes sociais que compartilha desinformação sem verificar, o profissional que segue práticas injustas sem questionar, o funcionário que aplica regras prejudiciais “porque é protocolo”. Em todos esses casos, a razão opera, mas não pensa, não questiona. O conformismo, mesmo desprovido de maldade explícita, pode causar danos profundos.

Este artigo não pretende esgotar a riqueza do livro de Souki e sim propor um contraponto. Uma década depois, na mesma UFMG, defendi uma dissertação de mestrado que deu origem a “Dilema do Prisioneiro: da teoria dos jogos à Ética” (2007). O foco agora se inverte: em um mundo aparentemente governado pelo egoísmo, como o bem pode existir?

Com base em Amartya Sen, argumento que os seres humanos não são apenas maximizadores de interesses. Somos também seres de vínculos recíprocos, movidos por compromisso, dever e lealdade, que são valores que nascem da nossa capacidade de nos relacionar de forma interdependente. O bem, portanto, não depende apenas de cálculos estratégicos; pode brotar de motivações profundamente humanas, enraizadas na nossa racionalidade social. 

Foi intrigante perceber que a mesma liberdade humana que, num caso, se mostra como porta de entrada para o mal, quando desligada do pensamento diante do cotidiano burocrático, reaparece, no outro, como fonte do bem, quando guiada por uma agência moral atenta e comprometida. Juntos, os dois estudos compõem um contraste quase simétrico, como um espelho que nos convida à reflexão:

— Souki mostra que, para o mal florescer, basta a pessoa abdicar do pensamento das consequências de suas ações.

— Meu trabalho argumenta que o bem pode brotar dessa mesma liberdade, quando orientado pela agência moral e pela interdependência recíproca.

Há, na verdade, uma pergunta velada em cada um desses caminhos. A leitura de Souki ecoa, ainda que não enuncie, uma antiga perplexidade: como é possível o mal num mundo em que Deus está presente? Já minha investigação envolvia uma inquietação oposta, secular e igualmente radical: num mundo sem Deus, como é possível o bem?

O choque está em reconhecer que tanto o mal quanto o bem são essencialmente humanos. A lição que une essas pesquisas é clara: a moralidade não vem de forças externas ou transcendentes. É uma construção terrena, feita de escolhas livres em contextos de responsabilidade.

Se a razão pode tanto permitir o mal banal quanto sustentar o bem emergente, qual seria seu critério de confiança? Esse é o dilema que ela nos coloca: por mais que a analisemos, seus resultados sempre carregam uma margem de imprevisibilidade. É nesse espaço que o contraste entre os dois livros se torna mais fascinante. Nem o mal é um destino, nem o bem uma promessa. A razão pode navegar entre eles, mas, para decidir, não depende da sorte, fé ou regra pronta, precisa de algo que está dentro dela mesma: um sentido de vida. Quem é esse criador de sentido, como um artista que dá forma à própria existência? É uma conversa para o próximo capítulo…

Elson Luiz de Almeida Pimentel
Mestre em Filosofia pela UFMG
Autor de Dilema do Prisioneiro: da Teoria dos Jogos à Ética


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