
Abrir um cofre! Ele não era dado a trancar coisas, não fechava nem as portas de sua casa, quem diria que um dia ainda manipularia o segredo de um cofre.
Acertaria a combinação? Agia desajeitadamente, em parte pela inexperiência, mas, com certeza, muito mais pela tensão em saber que o amigo, o dono do cofre, estava no hospital, entre a vida e a morte. “Pegue os papéis no cofre, pelo amor de Deus”, ele lhe tinha pedido quando o estavam levando para a sala de cirurgia, “e tome todas as providências ou eu perco aquele negócio”. Que sujeito mais frio, ele pensou, capaz de cogitar de negócios numa hora daquelas.
Ouviu um clique, girou a maçaneta e a porta se abriu. “Segunda prateleira de cima para baixo”, o outro tinha dito. Quando ele puxou a pasta, uma fotografia, que estava embaixo, veio junto.
Não era a mulher do amigo, aquela da foto, mas a dedicatória era para ele, a data era recente, e os olhos dela eram bonitos de não se esquecer. Mas ele tinha pressa, recolocou a foto no cofre, fechou a porta e foi cuidar dos negócios.
A porta do quarto do hospital se abriu, os familiares do acidentado se voltaram: era uma enfermeira. “Que mulher bonita”, disse uma das parentas. Mas elas estavam muito entretidas na conversa e voltaram a cochichar.
No entanto, a enfermeira não deu nenhum remédio ao paciente, não lhe tomou a pressão nem a temperatura. As mulheres cochichavam e não viram quando ela pegou a mão do homem, abaixou-se quase até seus rostos se tocarem e, então, chorou. Ficou assim por alguns segundos, a enfermeira, e quando os familiares se voltaram, ela já tinha deixado o quarto.
Uma das mulheres levantou-se e passou a mão pelos cabelos do homem; ele sonhava. Despedia-se da moça, debruçada na janela de seu carro, ela pedia muito que ele não fosse, ele arrancou, corria muito, o limpador do para-brisa o irritava, de repente um grande impacto e, então, aquele silêncio profundo, aquele frio… Agora ouvia vozes, sussurros, sentiu uma fisgada no braço, o tronco dolorido, mas, engraçado, não sentia as pernas, era como se o corpo terminasse na cintura. Percebeu uma claridade, vultos, alguém se debruçava sobre ele.
A enfermeira tinha voltado e, desta vez, conversou rapidamente com as mulheres que estavam no quarto. Elas viram como era bonita e uma delas comentaria, logo depois, que ela estava abatida. Mas trazia uma seringa e logo foi para perto do acidentado e lhe aplicou uma injeção. Viu que ele abriu os olhos e percebeu que tomava consciência das coisas. Foi então que se debruçou sobre ele e falou-lhe baixinho o nome, ele a reconheceu e apertou sua mão, e ficaram assim durante um longo tempo.
Agora o movimento no quarto era maior, tinha chegado a esposa do paciente, já sabiam que ele tinha recuperado a consciência e que não havia risco de vida. A enfermeira estava sempre lá, passava uma gaze umedecida no rosto do paciente, verificava sua temperatura, ajeitava o lençol.
Era no fim da tarde quando o amigo do acidentado retornou, depois de ter resolvido aquilo que lhe havia recomendado. Logo que abriu a porta do quarto, viu a mulher do acidentado e a enfermeira, junto à cama. Aproximou-se e limitou-se a dizer que estava tudo bem quanto aos negócios, tinha achado tudo, sem problemas no cofre.
– Ah! O cofre – disse o acidentado – eu lhe dei a combinação?
– Claro, não se lembra?
E foi nesse momento que o homem reparou, num relance, a enfermeira, e reconheceu aqueles olhos que tinha visto no retrato que estava no cofre. O outro, embora entorpecido pelos medicamentos e pelo trauma do acidente, percebeu no amigo um leve estremecimento. Já àquela altura dos fatos suspeitava do que havia acontecido com suas pernas e do que seria, a partir daí, a sua vida. Seus olhos passearam pelo quarto, a esposa, o amigo, e foram pousar na enfermeira, cuja mão segurou com decisão enquanto o outro percebeu que ele sorria.
Lindolfo Paoliello é cronista, autor de O País das Gambiarras, Nosso Alegre Gurufim e A Rebelião das Mal-Amadas.



