
Questão recorrente
De acordo com a recente decisão do STF a respeito das sobras de voto nas eleições proporcionais, uma sigla (partido ou federação) pode conseguir vaga no Legislativo em 2026 mesmo que não tenha atingido sequer 80% do quociente eleitoral (QE). Em que circunstâncias isso pode acontecer?
Contextualização
A partir do novo regramento do STF, o processo de transformação de votos em vagas legislativas continua perpassando rito sequencial de três etapas, com modificações na última, a chamada etapa da sobra das sobras ou da repescagem.
Na primeira etapa, consegue vagas a sigla que atingir o QE, tantas quantas o seu quociente partidário indicar (divisão dos votos válidos da sigla pelo QE). As vagas não ocupadas nesta etapa serão distribuídas por sobras de voto nas duas etapas subsequentes, aplicando-se o método das maiores médias*.
Na segunda etapa, só podem disputar as vagas sobrantes as siglas que alcançarem 80% do QE (e candidato com 20% do desse quociente), a conhecida “regra dos 80-20”. Ficam com as vagas as siglas detentoras de maiores médias.
Na terceira etapa, se ainda houver vaga remanescente, qualquer sigla pode conquistar vaga com a votação nominal que tiver, e não há exigências de barreiras quantitativas nem para partidos nem para candidatos. Antes do decisum do STF, nesta etapa era requerida da sigla o atingimento de 80% do QE, porém flexibilizada a imposição de 20% do QE para candidato. Agora não há mais condicionantes.
É oportuno lembrar que na eleição de 2022, ainda sob a égide da Lei 14.211/21, que estatuiu a regra dos 80-20, a terceira etapa para deputado federal apenas ocorreu no Distrito Federal e em três estados (Amapá, Rondônia e Tocantins). Para deputado estadual, entretanto, essa fase não aconteceu em nenhum estado da federação (as vagas foram todas preenchidas nas duas etapas iniciais).
A bem de maior compreensão, tome-se o caso do Distrito Federal como exemplo da aplicação da terceira etapa mencionada. Na eleição de 2022 no Distrito Federal foram disputadas oito vagas legislativas. O QE do pleito totalizou 200.940 votos. Três vagas foram preenchidas na primeira etapa (Republicanos, federação PT, PcdoB e PV e o PL, uma vaga para cada), restando cinco para alocar por sobras na segunda etapa.
Na segunda etapa, concorreram as siglas que cumpriam a regra dos 80-20. Assim, participaram as três que já obtiveram vaga na primeira etapa (têm mais de 100% do QE), e apenas mais um partido, o MDB, que obteve 162.125 votos, um pouco mais do que os 80% do QE exigidos. Dessa forma, as cinco vagas não ocupadas seriam distribuídas entre esses quatro partidos.
No cálculo das maiores médias, a primeira vaga foi para o MDB, que registrou a maior média, igual à sua votação nominal, de 162.125 votos**, a segunda vaga coube ao Republicanos, com média de 150.652 votos, a terceira vaga foi obtida pela federação PT, PcdoB e PV, com média de 145.502 votos, a quarta vaga foi ganha pelo PL, com média de 137.748 votos.
Na alocação da quinta e última vaga houve um problema. O Republicanos teria direito a essa vaga por ter obtido a quinta maior média, de 100.436 votos. Acontece que o partido não tinha mais candidato com votação superior a 20% do QE, ferindo a regra dos 80-20. O processo então foi para a terceira etapa, já que havia ainda uma vaga remanescente.
Na terceira etapa somente o Republicanos cumpria a exigência de 80% do QE, embora não tivesse candidato com 20% do QE. Mas, como este requerimento é dispensado nessa etapa, o Republicanos ficou com a última vaga.
Depois da decisão do STF (ex-tunc), retroativa à eleição de 2022, de que na última etapa do processo alocativo de vagas todos os partidos podem concorrer independentemente da regra dos 80-20, ou de qualquer barreira quantitativa, o PSB se credenciou à disputa, logrando 136.796 votos, a maior média dessa etapa, sua própria votação nominal, e conquistou a quinta e última vaga, tirando-a do Republicanos, cuja média era menor: 100.436 votos.
Considerações finais
Na disputa de vagas em eleições proporcionais as siglas com menor densidade de votos têm o grande desafio inicial de atingir o QE. Muitas não conseguem. Ainda assim, graças à democratização atual do processo de distribuição de sobras de voto, tais siglas se credenciam à ascensão ao Parlamento mesmo que tenham votação inferior ao QE: se igual ou superior a 80%, participam da segunda etapa e, se não chegam a esse nível, concorrem na terceira etapa com qualquer votação.
Uma sigla superar o requisito de 80% do QE na segunda etapa (ademais da exigência de 20% do QE para candidato) é condição sine qua non, mas daí a conquistar vaga há que galgar mais degraus. Vai depender de quantas vagas estão sendo distribuídas por sobras e se sua média de votos estará entre as maiores vis-à-vis as médias das demais siglas.
Suas concorrentes serão todas as siglas que vieram da primeira etapa e, portanto, têm votação superior ao QE, e siglas que, como ela, se habilitaram por superar 80% do QE. O ranking das maiores médias definirá as siglas ocupantes das vagas em disputa. Se, eventualmente, todas as vagas disponíveis nessa etapa não forem preenchidas, por conta da inexistência de siglas que atendam simultaneamente a regra dos 80-20, aí a sistemática de repartição das sobras entra na terceira etapa.
O obstáculo maior de uma sigla concorrer a vaga na democrática terceira etapa é a existência da própria etapa, que pode não acontecer, como se viu no pleito de 2024 para deputado estadual. Naquela ocasião todas as vagas nas 27 unidades da federação foram ocupadas durante o curso das duas etapas anteriores.
Mas se houver essa etapa, reside aí a grande chance de as siglas sem muita ossatura de votos conseguirem ascender ao Legislativo. Elas concorrem com as próprias votações nominais, já que não lograram alcançar o QE. As siglas com maiores votações desta repescagem, vale dizer, com as maiores médias, ficam com as vagas restantes.
A abertura propiciada pela legislação pós-STF é deveras auspiciosa. Repara as ofensas ao pluralismo político e à vontade do eleitor embutidas no regramento anterior e fica mais em sintonia com a lógica do sistema proporcional.
*Artigo originalmente publicado no Observatório ABRAPEL – Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais
Maurício Romão é Ph.D. em Economia pela Universidade de Illinois, Estados Unidos. Fundador e Coordenador do grupo “Pesquisas em Definitely” com a participação de Pesquisadores de Mercado e Opinião no Brasil. Artigo originalmente publicado no Observatório ABRAPEL – Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais.


