
Sol a pino em Roma. O termômetro bate 31 graus, na manhã de 7 de setembro. Defronte à Basílica de São Pedro, cuja construção foi encomendada em 1503 por Júlio II, o “Papa Guerreiro”, ao arquiteto Donato “Bramante” di Angelo del Pasciuccio, o papa norte-americano abriga-se sob o pálio armado no espaço sagrado.
Mas expulso pela canícula do “Ferragosto”, o povo, que andara sumido da Praça de São Pedro”, não estava de volta ali para celebrar os 120 dias de pontificado do Papa Leão XIV, eleito em 8 de maio deste ano como Soberano da Cidade do Vaticano, o 267º a calçar as Sandálias do Pescador.
O alvo das manifestações trepidantes dos peregrinos, procedentes dos cinco continentes, muitos deles do Mato Grosso do Sul, é um adolescente italiano. O “giovanotto” nasceu em Londres em 1991 e morreu em Monza em 2006, canonizado a partir de um milagre na escaldante cidade de Campo Grande.
Orgulhosa e tomada pela alegria do rejuvenescimento, a Igreja Católica dá vivas ao novo santo, São Carlo Acutis. O marketing do Vaticano, antenado com as técnicas da comunicação contemporânea, apresenta-o como o “padroeiro da Internet”. Um santo “millennial” que usava calças jeans e tênis Nike. Um nativo digital que utilizou a tecnologia do terceiro milênio na evangelização da rapaziada. A seu lado, outro jovem sobe os degraus do culto oficial, São Pier Giorgio Frassati, que ficou em segundo plano pela distância de sua morte, ocorrida em 1920, por poliomielite.
Carlo Acutis morreu de leucemia. Aos 15 anos de idade. O influenciador surge como um garoto de propaganda da santidade para uma juventude assolada por ondas de secularismo. Essas ideias relativistas e apologistas da ideologia de gênero foram combatidas pelo Papa Bento XVI por considerá-las ameaças às raízes cristãs da sociedade ocidental.
Acutis revive nos dias atuais o carisma de São Tarcísio, também menino, vitimado por “bullying ” de romanos de sua idade. O acólito do Papa Sisto II levava, dentro de uma caixinha de prata, as hóstias consagradas para os cristãos escondidos nas catacumbas da Via Ápia, perseguidos pelo imperador Valeriano. Corria o ano de 258 da era cristã. Surrado e martirizado, Tarcísio foi canonizado e declarado padroeiro dos coroinhas. Tinha apenas 12 anos de idade, segundo relata o Martirológio Romano.
Ao final da cerimônia, vaticanistas encostaram a orelha nas pedras da Praça de São Pedro, valendo-se da astúcia aprendida com os indígenas americanos para descobrir o que vem por aí. Eles perguntavam uns aos outros se o Papa Francisco também estaria a caminho dos altares. O jesuíta argentino vestiu o burel franciscano da pobreza, da compaixão, da paz e da causa ambiental.
Corajoso. Provocador como os jogadores de “sangre caliente” no futebol de Buenos Aires. Crítico contumaz dos cardeais da Cúria Romana. Envolveu-se em polêmicas que lhe custaram a oposição pública de expoentes do Colégio Cardinalício. Por incentivar, por exemplo, os padres a abençoarem casais do mesmo sexo. Os muros da capital italiana amanheceram, certa vez, pintados com acusações de comunista. Morreu no dia 21 de abril, em consequência de um AVC cerebral.
Os estudiosos do Palácio Apostólico não escutaram, porém, o tropel de movimentos pró-canonização do último Sumo Pontífice. Eles deixaram o esplendor da colunata projetada por Gian Lorenzo Bernini, adornada por 284 colunas monumentais, com dúvidas sobre quando, e, até mesmo, se o Papa Francisco receberá em futuro próximo as honras dos altares, tal como seus antecessores, os Papas João XXIII, Paulo VI e João Paulo II.
Em menos de cinco meses, desfez-se – como a neblina que às vezes cobre e repentinamente descobre a cúpula da basílica – o véu da comoção, que lotou as ruas imperiais e reuniu na Cidade Eterna para o funeral papal mais de 50 chefes de Estado. Entre eles, Donald Trump, dos Estados Unidos, Javier Milei, da Argentina, e os presidentes João Lourenço, de Angola, e Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, além de representantes da monarquia, como o Príncipe William, do Reino Unido, o Rei Abdullah e a Rainha Rania, da Jordânia, e o Rei Felipe com sua Rainha Letizia, da Espanha.
O ex-presidente norte-americano Joe Biden, acompanhado da ex-primeira dama Jill Biden, também esteve presente nas exéquias. Passou despercebido, tal como aconteceu agora com Papa Francisco nas cerimônias do domingo que inaugurou o mês de setembro.
Não se ouviram gritos de saudade do argentino Jorge Bergoglio. Nem a rede de TV da Itália, a RAI, mostrou cartazes e faixas com as palavras em italiano que marcaram os funerais do Papa João Paulo II, em 8 de abril de 2005: “Santo subito”. Em português, santo, já.
Dizia-se que as manifestações pela santificação do Papa Polonês brotavam do clamor popular. Da espontaneidade e da devoção. Empunhados daí para frente nas barbas da Santa Sé, por jovens do movimento “Comunione e Liberazione ”, vistos pela esquerda como gente de direita, os cartazes reintroduziram na era da revolução tecnológica tradições seculares na história da Igreja.
Francisco de Assis, de quem o argentino tomou o nome emprestado, ganhou a devoção do povo logo que morreu. Com fama de santidade e de realizar milagres. Ele foi canonizado pelo Papa Gregório IX, em 16 de julho de 1228, dois anos após morrer, aos 44 anos de idade.
Hoje, não é mais assim. Desde 1983, as novas regras para a canonização, promulgadas pelo Papa João Paulo II na Constituição Apostólica Divinus Perfectionis Magister, estabelecem que o processo canônico somente poderá iniciar-se cinco anos após a morte do candidato ao culto dos fiéis.
Mas não é bem assim também. Como soberano plenipotenciário, de posse das chaves dos reinos do Céu e da Terra, o Papa pode pisar no acelerador para o andamento da santificação. Sem o controle e a fiscalização do Legislativo e do Judiciário, o que mata de inveja os déspotas do mundo contemporâneo.
Bento XVI atropelou a norma canônica. O alemão Joseph Ratzinger, eleito sucessor para o trono petrino, dispensou todos os prazos e 26 dias após o falecimento do Papa Karol Wojtyla em 2 de abril de 2005, autorizou o início da causa de canonização. A claque das faixas e dos cartazes funcionou.
Escondido da horda de turistas e aninhado em um velho palacete da Via Monterone, 85, nas vizinhanças do Panteão e da Piazza Navona, o restaurante L’Eau Vive éa cova dos cardeais e bispos da Santa Sé. Eu também já almocei lá. Com direito à surpresa de um bolo de aniversário. (www.restaurant_eauvive.it)
As freiras carmelitas francesas comandam a casa desde 1969. Elas são as Trabalhadoras Missionárias da Imaculada da Família Donum Dei, que “ao exemplo das primeiras virgens cristãs da Igreja primitiva consagram toda sua vida a Jesus Cristo, compartilhando uma vida de fraternidade internacional com suas irmãs de diferentes raças”.
Dá para ver o arco-íris em suas lindas faces multiétnicas.
Apresentam-se como “um lugar de evangelização no coração de Roma”, especializado na cozinha de Paris, com um toque internacional. Servem, como entrada, entre pequenos milagres gastronômicos, Escargot da Borgonha à moda provençal (14, 50 euros) ou “Delícias da terra e do mar”, recheadas de camarões, maçã, abacate, palmito e coquetel de salsa (12 euros).
Recentemente, as irmãzinhas receberam para jantar parte do elenco de Conclave durante as filmagens romanas. Isabella Rosselini queria mostrar aos atores Stanley Tucci e John Litgow o restaurante preferido de sua mãe, Ingrid Bergman.
Nas mesas aconchegantes do salão, ronda uma pergunta de um milhão de euros: estaria o Papa Leão XIV disposto a infringir as regras do Código Canônico e antecipar em cinco anos a abertura dos procedimentos de canonização de seu antecessor, o Papa Francisco?
Pela legislação em vigor, “o bispo competente para instruir uma causa é aquele em cujo território o Servo de Deus morreu”. Como se sabe, Leão XIV é o bispo de Roma, onde Francisco deu seu último suspiro. O prazo da data canônica começa em 2030.
Com a liberdade dos filhos de Deus e a independência que o Espírito Santo infunde em suas mentes, alguns teólogos, da ala mais rebelde, ousam criticar a Santa Sé pela canonização massiva dos papas da modernidade. Segundo esses pensadores, trata-se de uma espécie de corporativismo pontifício.
Nos últimos cem anos, cresceu a tendência de um Papa canonizar o colega, engrossando a lista encabeçada por São Pio X (1835-1914), seguido por São João XXIII, São Paulo VI e São João Paulo II.
Há um quarto nome na fila da santidade oficial, o Papa Pio XII. Paulo VI, amigo do brasileiro Dom Hélder Câmara, deu a largada para a corrida sacra em 1965, durante o Concílio Vaticano II. Mas o processo de Pio XII foi interrompido pelo Papa Bento XIV, devido à repercussão negativa em Israel e na comunidade judaica mundial.
Acusam-no, injustamente, segundo quem conhece os documentos do Arquivo Secreto do Vaticano, de fazer vistas grossas ao holocausto judeu na Segunda Guerra Mundial. O arcebispo Eugenio Pacelli atuou como núncio apostólico na Alemanha, antes da coroação papal em 1939, tempos tenebrosos sob a bota de Adolf Hitler.
Dos 266 Papa já falecidos, 83 foram inscritos no cânon dos santos. Será Papa Francisco o próximo a subir aos altares da Igreja Católica? Ou outros santos vão passar à frente dele?
Somente no Brasil, há 52 na fila. Quatro deles de Minas Gerais, todos beatificados por Papa Francisco e no último passo para a glória celestial: o padre holandês Eustáquio van Lieshout (1890-1943), reverenciado na igreja do bairro Padre Eustáquio, em Belo Horizonte, onde viveu e foi muito amado pelo povo; Nhá Chica (1808-1895), que nasceu filha de uma escrava negra, em São João del-Rei e passou a vida cuidando dos pobres em Baependi; o padre Donizetti Tavares de Lima (1882-1961), da cidade de Cássia e com presença marcante em municípios paulistas; e o padre Francisco de Paula Victor (1827-1905), negro como Nhá Chica, acolhido no seminário de Mariana pelo bispo português Dom Antônio Viçoso (1787-1875), adversário feroz da escravidão.
O próprio Dom Viçoso, ainda na condição de Venerável, aguarda, há mais de um século, a beatificação nos escaninhos do Dicastério para a Causa dos Santos. Seu caso depende da comprovação de milagres, que podem ser dispensados, como Francisco fez para canonizar São José de Anchieta.
Nas mesas do “L’Eau Vive”, vaticanistas perscrutam os corações cardinalícios. Suas Eminências desfrutam, apaziguados, da lua de mel com o novo Sumo Pontífice. Sufragado por mais de cem votos, segundo inconfidências de quem esteve lá dentro, Leão XIV parece ter sido escolhido como um freio de arrumação. Para promover a reunificação da grei cristã. Costurar a túnica inconsútil ameaçada de fragmentação pelas disputas entre conservadores e progressistas. “Podemos todos caminhar juntos” – disse no primeiro discurso.
Governa com discrição. Fiel aos compromissos assumidos com seu eleitorado na Capela Sistina, em conclave prenunciado demorado e complicado como angu de caroço. Acabou aclamado, quase por unanimidade. Agora, discreto, não prega sustos. Prega a paz. Condena as guerras. Sem declarações bombásticas, a favor ou contra as pessoas LGBTQIA+. Proclamou que pretende construir pontes. Preserva os cardeais da Cúria, de onde veio. Nada de puxão de orelhas nos príncipes da Santa Madre. Afaga os descontentes.
Retomou algumas tradições colocadas de escanteio por Francisco. Por exemplo, voltou a gozar as férias de verão em Castel Gandolfo. Continua residindo onde morava como cardeal, o Palazzo del Sant’Ufizzio, sede do Dicastério para a Doutrina da Fé e, no passado, matriz da Inquisição. Homenageia o predecessor, que o nomeou cardeal e prefeito do Dicastério para os Bispos. Contudo, caminha com as próprias pernas, sem olhar para atrás. Para satisfação de uns e decepção de outros.
Em Roma, sopram os ventos alísios, fundamentais, explicam os marinheiros, para a navegação. Suas correntes, de conhecida regularidade e previsibilidade, moveram os navios a vela de Portugal e da Espanha, mar a dentro, abrindo-lhes o caminho marítimo para as Américas. Agora, embalam o barco de Pedro. Acalmaram-se os ventos Zonda argentinos. Eles descem dos Andes com rajadas de até 120 quilômetros por hora, arrasando prédios e plantações.
Desconfia-se que Francisco, um papa inesquecível para mim e talvez para você também, terá de esperar a fila andar. Será feito santo, “mà non subito”.
J.D. Vital é jornalista e escritor, membro da Academia Mineira de Letras. Autor de “Como se faz um bispo, segundo o alto e o baixo clero”
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