Mulher anotando o lixo (por Lindolfo Paoliello)

Sua postura é de quem está consciente do que faz, ela conhece o seu ofício. [...]

Paro em uma esquina de Belo Horizonte e vejo, no passeio em frente, uma catadeira de papéis fazendo anotações.

É uma mulher de uns 40 anos, vestida miseravelmente, descalça, com um pano dobrado na cabeça, com certeza a almofada em cima da qual vai colocar os sacos cheios de papéis que estão juntos aos seus pés.

Tem um bloco de papel na mão esquerda, essa mulher, alheia às pessoas que passam, aos carros que buzinam, aos ônibus que despejam passageiros junto dela, permanece tranquila e absorta, essa mulher.

Uma catadeira de papéis que faz anotações. Não fossem os trajes, e os sacos de plástico que denunciam sua atividade, poderia ser perfeitamente uma fiscal municipal fazendo o seu trabalho, ou uma funcionária do trânsito. Sua postura é de quem está consciente do que faz, ela conhece o seu ofício.

Que anotações fará uma catadeira de papéis, uma miserável, alguém que vive de remexer o lixo. A primeira coisa que me vem à cabeça é uma dedução de ordem prática: deve ser um controle daquilo que já recolheu, um papel de embrulho aqui, caixas vazias ali, jornais velhos, revistas; ou também poderia ser um rol daquilo que ela se propõe a recolher durante sua jornada de trabalho e, neste instante, ela pode estar fazendo uma parada para avaliar seus resultados, quem sabe?

Tão atenta, a mulher, tão absorta, seria possível alguém ter essa expressão no rosto enquanto anota coisas tão prosaicas? No entanto, sua atitude é de quem reflete. Teria alma de socióloga, essa mulher? Que chances privilegiadas ela tem de conhecer a intimidade da população.


Lindolfo Paoliello é cronista, autor de O País das Gambiarras, Nosso Alegre Gurufim e A Rebelião das Mal-Amadas.