
Senti falta de ar quando caminhava, minha mulher insistiu para darmos uma passadinha no pronto-socorro, resisti, acabei indo. Disseram que eu sofria um ataque do coração, me grudaram, tiraram a roupa, mandaram para o CTI, me espetaram todo. Crucificaram-me de braços abertos, sem poder movê-los. Aparelhos apitavam igual submarino afundando em filme da Segunda Guerra e agulhas entravam não sei quantos metros dentro das veias. Fiquei com os olhos deste tamanho. Até então, só tinha passado em hospital para visitar amigos e parentes.
Minha primeira reação foi negar tudo. Nunca houve um único caso de infarto na família, meus exames de sangue são normais, possuo bom condicionamento físico, privilegio dieta de verduras, frutas e carne magra, não fumo, meu ergométrico recente recebeu nota dez. Por que eu? Mas os médicos e sua parafernália sabiam mais que minha negação. Para me consolar, o cardiologista disse que sofri o infarto dos sonhos: levinho, sem dor, numa artéria periférica, sem qualquer comprometimento do coração, o que me permitiria levar uma vida absolutamente normal. Infarto dos sonhos? Pesadelo também é sonho.
O CTI me pareceu, a princípio, uma sala de tortura. Ouvi respirações ofegantes, eventuais gritos, testemunhei corre-corre com aparelhos que lembravam os de inquisidores e ditadores. Depois, me senti prestes a ser abduzido. Surgiram sobre meu leito uns homenzinhos verdes com uma máquina que, em minha sonolência, me remeteu à ficção científica: raptavam-me para algum planeta distante. Enganei-me. Era apenas um aparelho de raios-x. Os vampiros, porém, foram reais. Com a desculpa de fazer exames, banquetearam-se com litros de meu sangue. Um deles, depois de quase esvaziar minhas veias, voltou para encher mais um tubo. Viera pegar a sobremesa.
A partir do segundo dia, comprovei, uma vez mais, que nossa humanidade está presente em cada cantinho do mundo, até naquele onde a morte circula com desenvoltura. Descobri a dura luta pela sobrevivência que enfrentam os enfermeiros, às vezes tratados com desprezo pelos médicos. Um deles larga o plantão de 12 horas, voa para outro hospital para assumir outro plantão, também de 12 horas. Confessou-me que estava exausto, ano após ano nessa labuta. Escutei, através dos plantonistas no corredor, casos de amor proibido, paixões reprimidas, problemas financeiros insolúveis, filhos rebeldes. Uma senhora rezava dia e noite num terço com contas tão grandes que cada Pai Nosso devia valer por três. Um paciente recusou o leito no canto do CTI, pois ali o feng shui não era bom. Vizinhos me obrigaram a acompanhar todos os programas de televisão madrugada adentro. Fiquei emocionado com a garota que passou a última noite de mãos dadas ao avô desenganado. De fato, de manhã cedo, à minha esquerda, ela chorava o desenlace. Mais tarde, à minha direita, foi a vez do paciente com infecção generalizada partir. Ainda bem que não vi o momento em que a morte saltou por cima do meu leito, poupando-me. E se ela errasse o salto?
Depois de dois dias no CTI e um stent numa artéria, retomei a vida. Vida normal, sem sequela. Já caminhei até no alto dos Andes. Mas caminho por com um olhar diferente, como se tivesse descoberto um segredo. Não senti a dor do infarto. O que agora me dói é a dor que infarta tanta gente e não existe stent para curá-la.
Luis Giffoni é Escritor, Membro da Academia Mineira de Letras. Prêmio Jabuti



