
A administração Trump vem revolucionando as políticas comerciais dos EUA. Historicamente os EUA utilizaram tarifas com base nos seguintes objetivos: gerar receitas tributárias, restringir importações para proteger produtores domésticos e promover reciprocidade.
Essa estratégia (3Rs) foi ajustada ao longo dos anos. Em 1934, o Congresso dos EUA aprovou o Reciprocal Trade Agreements Act, que transferiu parcialmente o poder de negociar tarifas do Congresso para o Presidente. O princípio subjacente a essa lei era de que os EUA diminuiriam as suas tarifas em troca de concessões similares de seus parceiros comerciais.
Nas décadas seguintes uma série de outros instrumentos de política comercial foram aprovados pelo Congresso norte-americano delegando ao Executivo, sob certas condições, poderes emergenciais para a determinação de tarifas. Esses instrumentos foram desenvolvidos para combater práticas desleais de comércio (Seção 301 do Trade Act de 1974 e a legislação antidumping), responder a ameaças à segurança nacional (Seção 232 do Trade Expansion Act de 1962), e salvaguardar contra aumentos inesperados de importações que possam impactar significativamente indústrias domésticas (Seção 201 do Trade Act de 1974; a Seção 421, por sua vez, oferecia salvaguardas especificas com relação às importações da China após a sua entrada na Organização Mundial de Comércio, mas foi descontinuada em 2013).
Esses instrumentos emergenciais para a determinação de tarifas, quotas ou outras restrições ao comércio internacional seguem um cronograma específico para a sua implementação. A Seção 301, por exemplo, estabelece um prazo de 12 a 18 meses a partir do início de uma investigação até a determinação se as políticas de um país caracterizam ou não práticas desleais de comércio. E no caso de uma determinação positiva, a implementação de ações retaliatórias devem ocorrer a partir de 30 dias da determinação.
No pós-Segunda Guerra Mundial, os EUA tiveram um papel fundamental na criação do General Agreement on Tariffs and Trade (GATT, 1947), que mais tarde se tornaria um dos pilares da Organização Mundial de Comércio (OMC, 1995). No GATT, o conceito de reciprocidade é articulado em termos do princípio incondicional de nação mais favorecida (Most Favored Nation, MFN).
O tratamento comercial oferecido por um membro da OMC deve replicar os termos mais favoráveis disponíveis em suas relações bilaterais com outros membros da organização (com exceções nos casos de acordos de livre-comércio e práticas desleais de comércio). Essa abordagem gera incentivos para uma liberalização comercial progressiva. Em contraste, a administração Trump vem adotando uma abordagem baseada no conceito de reciprocidade negativa, em que as tarifas dos EUA devem refletir o nível das tarifas aplicadas às exportações dos EUA em cada caso.
Existem, porém, outros aspectos das decisões tarifárias dos EUA que são surpreendentes. Com o objetivo de acelerar a implementação e a flexibilidade de suas medidas de política comercial, a administração tem utilizado o International Emergency Economic Powers Act (IEEPA, 1977), que autoriza intervenções na regulamentação de transações econômicas internacionais no caso de emergência nacionais. Ao declarar o déficit comercial dos EUA como uma emergência nacional, o IEEPA passou a fornecer a base legal para a adoção das tarifas recíprocas anunciadas no Liberation Day.
Tarifas recíprocas para cerca de 185 países e territórios foram anunciadas pelos EUA em 2 de abril. O cálculo dessas tarifas foi recebido com um misto de incredulidade e observações sobre a arbitrariedade dos cálculos. A fórmula basicamente utiliza o déficit comercial em bens dos EUA com cada país dividido pelo valor das importações que vêm do parceiro comercial. Esse resultado foi dividido pela metade para refletir, segundo o Presidente Trump, a magnanimidade dos EUA. A arbitrariedade do processo é ilustrada pelo fato que o território australiano das Ilhas McDonald e Heard foi “agraciado” com uma tarifa de 10%, muito embora as ilhas sejam desabitadas. No caso de países com os quais os EUA tinham um superavit comercial em 2024 (por exemplo, Brasil), e em alguns casos especiais (por exemplo, Afeganistão), a tarifa recíproca foi inicialmente estabelecida em 10%. Em síntese, os EUA estão ignorando as disciplinas da OMC e elevando a sua tarifa média de forma significativa.
O anúncio das tarifas recíprocas gerou reações nos mercados financeiros. No dia 8 de abril, os EUA observaram um resultado inesperado nos mercados de ações, de títulos e do dólar. Pela primeira vez desde 2002, esses três mercados sinalizaram resultados negativos simultaneamente (um episódio que o mercado caracteriza com um “triple red”). O dólar dos EUA é beneficiado pelo seu papel de moeda de referência para a economia global. Em momentos de crise, quando o mercado acionário declina, tipicamente o dólar aprecia e os títulos do Tesouro atraem mais compradores. Em abril, o cenário mudou com quedas observadas no mercado acionário, depreciação do dólar e dos títulos governamentais, um comportamento típico de mercados em economias emergentes.
Os mercados se estabilizaram rapidamente, mas o susto foi suficiente para a administração Trump postergar a imposição das tarifas recíprocas no dia 9 de abril. Essa pausa deveria durar até 8 de julho e negociações com a China, Reino Unido e a União Europeia (EU) foram marcadas por acordos parciais com o objetivo de desescalar as tensões. No dia 9 de julho, os EUA iniciaram o envio de cartas para diferentes países anunciando novas tarifas que passariam a ser aplicadas em 1 de agosto.
No caso do Brasil, a tarifa anunciada foi de 50% em contraste com os 10% anunciados em 2 de abril. Esse é o nível tarifário mais elevado anunciado até esse momento no contexto de tarifas recíprocas e claramente tem uma motivação política ao invés de um objetivo econômico. Em primeiro lugar, nos últimos 15 anos o Brasil acumulou um déficit de US$410 bilhões em suas transações em bem e serviços com os EUA. Especificamente em 2024, o déficit brasileiro na balança comercial de bens com os EUA foi da ordem de US$7,4 bilhões. Esse resultado levou ao anúncio original de uma tarifa recíproca de 10% imposta a países que na realidade têm um déficit comercial ao invés de um superavit vis-à-vis os EUA.
O caráter político da decisão é também ilustrado pelo parágrafo inicial da missiva que argumenta que o processo judicial contra o ex-Presidente Bolsonaro caracteriza uma “caça às bruxas” e deve ser abandonado imediatamente (em letras maiúsculas!). Cabe observar que a expressão “caça às bruxas” é uma das preferidas de Donald Trump e ele a tem utilizado corriqueiramente para caracterizar investigações que ele considera adversas a seus interesses ou a de seus associados. A carta também argumenta que a corte suprema brasileira (o STF) tem adotado práticas de censura, que afetam redes sociais de empresas dos EUA.
Além disso, os EUA iniciaram uma investigação com base na Seção 301 no dia 15 de julho, alegando práticas desleais de comércio com respeito a comércio digital, serviços eletrônicos de pagamentos, tarifas preferenciais, práticas de combate a corrupção, proteção inadequada de propriedade intelectual, acesso de mercado para o etanol e deflorestamento ilegal. Como já mencionado, uma investigação desse tipo pode gerar tarifas ou restrições comerciais por volta de 8/2026 ou até 2/2027. Tudo indica que a administração Trump pretende utilizar essa investigação como um trunfo nas negociações associadas à tarifa de 50%, que deve incidir a partir de 1 de agosto.
O impacto macroeconômico das tarifas norte-americanas deve gerar uma diminuição das exportações brasileiras da ordem de 0,3% do PIB em 2025 e de até 0,6% do PIB em 2026 de acordo com alguns analistas. Os números não são dramáticos a nível agregado, mas podem ter um impacto significativo no contexto de alguns setores (por exemplo, agronegócio, siderurgia, máquinas e equipamentos) e empresas (por exemplo, a Embraer). As implicações para mercados de trabalho locais podem também ser significativas, dependendo da viabilidade de diversificação das exportações para outros mercados.
Os EUA também serão afetados negativamente pelas tarifas. No caso das exportações brasileiras, as empresas siderúrgicas dos EUA que processam semiacabados brasileiros, empresas que dependem do suco de laranja brasileiro e aquelas que processam o nosso café, por exemplo, serão impactadas, com externalidades significativas para os consumidores finais.
Estimativas do impacto de todas as tarifas recíprocas, bem como outras tarifas associadas com a seção 232, sugerem que elas poderiam gerar um impacto negativo de 0,8% no PIB dos EUA (taxfoundation.org). Esses cálculos se baseiam em hipóteses sobre o comportamento de consumidores e dos parceiros comerciais afetados (admitindo que não ocorrerão retaliações). O nível de incerteza, porém, permanece extremamente elevado e os mercados financeiros parecem ter desistido de prever o impacto do tsunami tarifário, aguardando a determinação final dos níveis tarifários em meio a uma série de negociações.
No caso do Brasil, a administração Lula vem tentando restaurar canais de comunicação e o engajamento do setor privado é considerado essencial nesse processo. Até esse momento, porém, não existem evidências de resultados concretos. Um dos aspectos que têm sido mencionados é a reação negativa do Presidente Trump à agenda dos BRICS e o papel do Brasil nesse contexto. É interessante observar que as tarifas recíprocas anunciadas para países dos BRICS até o dia 21/07 não são uniformes. No caso da África do Sul, um país com um superavit comercial de US$9 bilhões em suas relações com os EUA em 2024, a tarifa será de 30% e no caso da Indonésia, um país com um superavit de US$18 bilhões, a tarifa inicialmente anunciada seria de 32%, mas foi reduzida para 19% no contexto de um acordo preliminar para o comércio bilateral. Em síntese, a “irritação” da administração Trump, a despeito do superavit que os EUA obtêm em suas relações com o Brasil, parece ser alavancada por motivos não-econômicos.
Nas atuais circunstâncias é evidente que negociar sobre as decisões do STF não é admissível. Adotar retaliações comerciais apenas aumentaria os custos econômicos do conflito. Engajar parceiros privados de empresas brasileiras para explicitar os custos das tarifas para todos os envolvidos é o caminho correto. No dia 18/07, duas empresas que importam suco de laranja do Brasil apresentaram um protesto legal ao tribunal de comércio internacional dos EUA (US Court of International Trade), argumentando que as tarifas teriam um impacto deletério sobre as suas atividades nos EUA. Além disso, os demandantes observam que o uso de tarifas para criar incentivos para resolver demandas políticas (o tratamento do ex-presidente Bolsonaro e as decisões do STF) ao invés de questões associadas com a balança comercial não é autorizada pela IEEPA. Será interessante acompanhar como esse caso irá evoluir.
Com respeito à data de 1/08, porém, não é possível ser otimista sobre as chances de uma resolução rápida do conflito. Quando indagado sobre as razões para a imposição da tarifa de 50% ao Brasil pela imprensa, Donald Trump disse que o fez porque ele pode fazê-lo. Não imagino que o Presidente Trump tenha lido “O Príncipe” de Maquiavel, mas as suas ações são consistentes com a premissa de que o exercício do “poder não é para os mocinhos”.
Carlos Primo Braga é Ph.D. em Economia pela Universidade de Illinois Urbana-Champaign, Professor Associado da Fundação Dom Cabral. Foi Diretor de Política Econômica e Dívida do Banco Mundial. Autor.