
Sonhei que estava no ano 2050, caminhando pelas ruas de Hong Kong. Em todos os quarteirões, alardeadas por propaganda em outdoors luminosos e em 3D, havia lojas de três cadeias mundiais de refeições rápidas: o FrangoFar™, que servia um delicioso frango com farofa, acondicionado em caixinhas de sapato assinadas pela grife Ronaldo Fraga; o Tchê™, rede mais sofisticada com o famoso churrasco gaúcho desprovido de setenta por cento das gorduras; e o Mineiro™, campeoníssimo universal de vendas, um irresistível sanduíche de linguiça com pão de queijo, acompanhado de guaraná.
Pedi este último numa lanchonete, o atendente identificou meu sotaque brasileiro, indagou-me a pronúncia correta de “mineiro”. Com muito esforço, parou de dizer “minelo”.
Sentei-me numa das mesas, decoradas com fotografias de Ouro Preto e, enquanto apreciava um chorinho no som ambiente, o freguês à esquerda confessou que aderira ao fã clube do carro Tongadamironga, o melhor do mundo depois que o equiparam com o motor Pai de Santo, recomendado até pelos grandes terreiros da Bahia, aval global de qualidade. Após muitas loas à beleza e ao arrojo do veículo, elogiou a genialidade do brasileiro, um povo que soube aliar os prazeres da vida ao trabalho criativo, gerando uma civilização vibrante, digna de ser imitada pelos chineses. E por todos na Terra, completou.
No momento seguinte, em Manhattan, lia no New York Times um artigo sobre a pouca originalidade da arte norte-americana quando comparada à efervescência existente no Brasil, o polo mais inventivo do planeta. O autor também exaltava o autêntico interesse dos brasileiros pelos próprios artistas, sinal de que sua cultura ia de vento em popa, enquanto a norte-americana despencava para a periferia a que fazia jus, exaurida depois de sobreviver à custa de muita autopromoção na mídia. Por fim, vaticinou: havia um novo Renascimento em curso, dessa vez com sabor tropical. Da Vinci e Michelangelo que se cuidassem.
No Louvre, participei de uma rodada de capoeira com congado para comemorar a vitória da cachaça como bebida patrimônio da humanidade. A nota destoante veio do mestre de cerimônias parisiense que, após depreciar o uísque escocês, procurou resgatar o orgulho nacional com elogios rasgados aos vinhos franceses, embora ressaltasse que não se tratava de bebida destilada. Para encerrar a festa, o grupo de travestis Bois de Boulogne , para delírio dos europeus, entoou a infalível Aquarela do Brasil. Aplausos de pé para tanta criatividade. Sortearam duas passagens para o Rio de Janeiro, e os contemplados agradeceram com muitas lágrimas aos patrocinadores. Ao final, todos caíram no samba, tentando imitar nossa ginga, evidentemente sem sucesso,
Em desespero, acordei com o coração saindo pelos olhos. Ao lado da cama, vi um Big Mac ensebado, coberto por uma faixa branca e rígida de gordura, e um copo de Coca-Cola com uma camada de água por cima, oriunda do gelo derretido. Diante do quadro, aturdido pelas fantasias loucas, o desespero aumentou, porém uma luz brilhou nos miolos. Se me haviam convencido de que Big Mac e Coca-Cola eram comida e bebida, por que duvidaria de meu sonho?
Luis Giffoni
Escritor, Membro da Academia Mineira de Letras
Prêmio Jabuti