Sobre os governos no Brasil

"Nada é como se dá. Temos que alterar os fatos, tais como se deram, para poder realmente perceber o que se deu. [...]

“Nada é como se dá. Temos que alterar os fatos, tais como se deram, para poder realmente perceber o que se deu. É costume dizer que contra fatos não há argumentos. Ora, só contra fatos é que há argumentos. Os argumentos são, quase sempre, mais verdadeiros do que os fatos. A lógica é o nosso critério de verdade, e é nos argumentos, e não nos fatos, que pode haver lógica.” (Fernando Pessoa)

Envolvidos numa batalha ideológica que, em verdade, a poucos interessa, seguimos, no Brasil, à deriva. O governo privilegia a batalha ideológica aos fatos. Todos, em redor, governo inclusive, construímos explicações para o fracasso. Foi a crise internacional. Escolhemos proteger nossa população, coisas assim, razoáveis. Outras, nem tanto. Temos também que destruir nossa presença internacional e aplaudir experimentos latinos fracassados porque os consideramos aparentados com a nossa ideologia.

Escolhemos, e não foi só o governo, foi a sociedade que elegeu o governo, um pensamento primitivo e salvacionista sobre o funcionamento das coisas. De um lado, vejam, fizemos, nos últimos anos, uma opção correta, a de gastar dinheiro público com a superação da miséria. Criamos importantes programas que, hoje, são inseparáveis de nossa agenda de políticas públicas. Não devemos abrir mão e, aparentemente, não queremos, abrir mão de nossas políticas sociais redistributivistas.

São baratos e relevantes os programas sociais. O que o Brasil fez, em termos de combate à desigualdade e à miséria, é quase único.

Combater a miséria e a pobreza, melhorar a distribuição de renda, é agenda relevante, seja do ponto de vista humanitário, seja do ponto de vista técnico. Não há vantagem alguma, seja do ponto de vista econômico ou humanitário, em manter a pobreza e a miséria. É pura estupidez, sem ideologia, é pura estupidez.

Portanto, vejam, superamos a fase em que se podia dizer que havia ódio contra os pobres, que alguém estaria aborrecido porque os pobres estão a ganhar benefícios. Quem pode estar aborrecido, isto sim, é o povo do andar de cima, aquele um por cento de que os americanos falam, que perigam perder benesses governamentais.

Os militares tentaram investir numa burguesia brasileira, inventar uma classe social e compromete-la com um projeto de Brasil Grande, aquele da Copa de setenta. A tal burguesia brasileira rapidamente enriqueceu, vendeu seus ativos e mudou-se para Miami. Os militares, com aquele projeto de modernização por cima, ficaram a ver navios.

Depois, fraco de memória, vem o PT, com a mesma conversa, criar as empresas fundamentais, a burguesia brasileira. E tome dinheiro nelas, Friboi e coisas assim. Ganharam, os governantes, uns minutos de sossego, mas compraram o povo errado. É que não existe fato sem interpretação. Já cometêramos o erro antes, a tal burguesia brasileira, a verdadeira, ainda está sendo construída. O governo apostou, para fins exclusivamente eleitorais, nos candidatos da vez, que também poderiam todos ir para Miami, se os procuradores não chegassem antes.

Não para viver assim, fingindo que temos clivagens ideológicas fundamentais e nos afundando no abismo da corrupção clientelista.

Está na hora de acordar. Não há clivagens insuperáveis entre o que se chama de esquerda e o que se chama de direita no país. A agenda da esquerda e da direita se refere a aspectos civilizatórios relevantes. Não se confunde com conversas sobre roubos, corrupções, os fins justificam os meios, nada disso, não se confunde com a moralidade.

Estamos confundindo as coisas. A agenda civilizatória inclui, sim, contradições sobre os fundamentos, mas não inclui nenhuma esperteza sobre o roubo, a mentira, a esperteza.

Bagunçamos a conversa sobre esquerda e direita, como brasileiros. E nos empobrecemos com esta bagunça.

Nem o pensamento de esquerda, nem o pensamento de direita, querem estar associados à improbidade moral. Não há escolha. O pensamento, o argumento sobre futuros desejáveis, não pode incluir imagens trêfegas e corruptas. Estamos capturados pela conversa errada, sobre este ou aquele governo.

Esta encrenca toda, foi meu ladrão ou foi seu ladrão, está errada. Todos nós, cidadãos de bem, não podemos cair nesta falsa escolha, não existe o meu ladrão ou o seu ladrão.

A fuga ideológica é nada mais que isto, uma fuga. Ou somos competentes, ou brigamos em torno de uma guerra falsa, disfarçada de preferências.

Não existem alternativas à competência. A ideologia não pode ser um disfarce. O bem-estar das pessoas é fundamental.


Edson de Oliveira Nunes é Ph.D. em Ciências Políticas pela Universidade de Berkeley. Foi Presidente do IBGE, Presidente do Conselho Nacional de Educação, e Professor Emérito da Universidade Candido Mendes. Autor