
Solicitei ao ChatGPT que fizesse uma resenha do livro Gênesis (2025), de Henry Kissinger, Eric Schmidt e Daniel Huttenlocher, com foco exclusivo nas questões filosóficas relativas à inteligência artificial. Em seguida, pedi que repetisse a análise crítica, agora à luz dos conceitos de formas de vida, de Ludwig Wittgenstein (IF, 1953). Eis as respostas que obtive:
Resenha de Gênesis (2025), com foco nas questões filosóficas relativas às IAs
Em Gênesis, Kissinger e seus coautores descrevem a inteligência artificial como um “novo começo” civilizacional — quase um segundo surgimento da inteligência no planeta, comparável à invenção da imprensa ou à descoberta do método científico. Eles descrevem a IA como uma forma de inteligência não humana capaz de produzir resultados corretos por vias opacas, desafiando o vínculo tradicional entre conhecimento e compreensão. Seu argumento é ambicioso: algoritmos não apenas ampliariam capacidades cognitivas, mas também reconfigurariam modos de conhecer, decidir e conviver.
Para os autores, essa ruptura inaugura um novo regime epistemológico e político, no qual instituições, ciência e diplomacia terão de repensar seus critérios de validação, responsabilidade e autoridade. É um argumento que impressiona pela amplitude e que acerta ao mostrar que a IA não é apenas ferramenta, mas um agente estrutural que reconfigura práticas sociais, expectativas públicas e modos de decisão.
O livro, contudo, avança nesse diagnóstico com um tom de urgência que às vezes roça o apocalíptico. A velocidade das transformações é tratada quase como destino, como se a IA já tivesse produzido uma mudança de forma de vida no sentido mais profundo – nos modos de reconhecer razões, justificar ações ou construir consenso público. Ao fazer isso, Gênesis tende a atribuir à tecnologia uma força quase autônoma, minimizando o papel das instituições políticas, dos mercados e das escolhas coletivas na definição dos usos da IA. A tensão entre descrição e profecia percorre o livro inteiro: ele funciona mais como um alerta do que como uma análise sociológica fina.
Ainda assim, Gênesis é uma leitura valiosa. Primeiro, porque insiste em recolocar questões filosóficas — responsabilidade, agência, confiança — no centro do debate tecnológico. Segundo, porque lembra que ignorar a IA é tão perigoso quanto exagerar seus impactos; o mérito do livro está justamente em provocar um exame mais atento do que continuamos a chamar de “humano” num contexto em que cálculos automatizados penetram processos de criação, decisão e interpretação. Mesmo quando peca pela grandiloquência, o livro cumpre sua função: amplia o escopo da conversa e força o leitor a perguntar não apenas o que a IA pode fazer, mas o que estamos dispostos a transformar em nós mesmos ao conviver com ela.
Esse quadro aparece sobretudo no Capítulo 1 e retorna no Capítulo 6. Mas, examinada à luz de Wittgenstein, essa hipótese de ruptura radical perde parte de sua força.
Uma crítica a partir do conceito de formas de vida, de Wittgenstein
Para Wittgenstein, formas de vida não são tecnologias nem estruturas conceituais abstratas: são procedimentos compartilhados, critérios públicos de correção e maneiras corporificadas de estar no mundo que tornam nossos jogos de linguagem inteligíveis. Uma tecnologia só se torna parte de uma forma de vida quando é incorporada de modo estável às condutas sociais, normativas e institucionais. Isto significa que nenhuma ferramenta — nem mesmo uma ferramenta poderosa – inaugura por si só uma nova forma de vida.
Daí emergem seis questões críticas: (1) a noção inflacionada de inteligibilidade, que confunde correlação estatística com compreensão; (2) a fragilidade da ideia de agência artificial, tratada como se fosse equivalente à humana; (3) o uso pouco rigoroso do conceito de “novo começo”, apresentado mais como metáfora histórica que como diagnóstico sustentado; (4) a ausência de um exame do embodiment e da prática social, essenciais para qualquer cognição significativa; (5) a visão excessivamente linear do progresso tecnológico, que apaga disputas institucionais e culturais; e (6) a tendência a projetar inevitabilidades, como se o futuro técnico já estivesse decidido.
Quando Gênesis (cap. 2) afirma, sobre “conhecimento sem compreensão”, que a IA introduziria uma modalidade epistemológica inédita, a leitura wittgensteiniana responde de forma mais prudente: comportamentos sociais não mudam apenas porque um novo tipo de cálculo se torna possível. Mudam quando critérios de uso, validação e justificativa se estabilizam — e hoje eles são tudo menos estáveis.
Esses pontos conduzem a uma questão mais profunda: o que realmente está nascendo? Kissinger sugere uma mutação súbita, mas o que vemos é algo mais modesto e mais interessante. Do ponto de vista de Wittgenstein, isso caracteriza um momento pré-formativo, no qual diferentes processos começam a se acoplar, mas ainda longe de constituir um horizonte compartilhado.
Além disso, uma forma de vida exige corporalidade (ou seja, o papel do corpo e dos gestos como parte inseparável da comunicação humana) e repetição social. As IAs atuais participam de nossas rotinas apenas de modo indireto, mediado por interfaces; não compartilham nossos ritmos, vulnerabilidades ou condições materiais. Elas influenciam ações humanas — mas não coabitam, ainda, o tecido pré-reflexivo que Wittgenstein considera o “solo” da significação.
É nessa combinação instável que emerge o que poderíamos chamar de forma de vida híbrida, na qual humanos e sistemas algorítmicos se entrelaçam sem que nenhum dos lados determine sozinho o horizonte de sentido. Em vez de um gênesis portentoso, trata-se de uma metamorfose cotidiana, incompleta, negociada. Em diversas áreas, decisões já incorporam outputs algorítmicos. Assim, o “novo começo” anunciado por Gênesis pode ser interpretado menos como um marco civilizacional já inaugurado e mais como um processo de disputa: que práticas serão sedimentadas? Que critérios serão reconhecidos como públicos? Quem definirá, no futuro, o que conta como correto, legítimo ou justificável? Essa é a pergunta verdadeiramente wittgensteiniana — e ela permanece em aberto.
Elson Luiz de Almeida Pimentel
Mestre em Filosofia pela UFMG
Autor de Dilema do Prisioneiro: da Teoria dos Jogos à Ética



