
Gosto de desafios. Eles lubrificam os músculos e os neurônios, aumentam o patamar de resistência, alimentam os dias, quebram o glacê do conforto. Quanto mais difíceis, melhores. Exigem ultrapassar limites, vencer o medo. E levantam a terrível questão: vou dar conta?
Também gosto de escalar montanhas. Por quê? Não sei. Talvez porque elas estejam aí, pedindo para ser visitadas. No cume, há sempre a sensação de bem-aventurança. Dizem que é o efeito da endorfina liberada pelo corpo, mas desconfio de algo maior, uma dose maciça daquela força que nos faz seguir em frente, mesmo diante da vicissitude. Ou uma pílula concentrada de Éden ou Nirvana. Ou tudo junto.
Resolvi aliar os dois gostos e subir uma montanha com seis mil e cem metros de altitude, nos Andes bolivianos, o Huayna Potosí. Isso é o dobro do pico mais alto do Brasil, o da Neblina. Eu mesmo desconfiei de minha sanidade no início, mas a vontade me empurrou em frente. A família e os amigos não tiveram dúvida: era loucura mesmo. Ninguém topou me acompanhar. Parti sozinho para La Paz.
Enquanto me aclimatava à altitude, visitei um cume com cinco mil e quinhentos metros, fiz escaladas verticais no gelo e contratei uma empresa experiente nas trilhas do Huayna. Uma semana depois da chegada à capital boliviana, iniciei a aventura. No primeiro acampamento, ouvi os relatos dos que não tinham conseguido. Achei que também não daria conta.
A escalada não foi fácil. Saímos à meia-noite, seis europeus com menos da metade de minha idade, dois guias e eu. Temperatura de quinze graus abaixo de zero, vento cortante, neve nos olhos, sede, suor. Sim, suor no frio. O esforço faz suar muito. Depois vem o cansaço. E falta o ar. De repente, o silêncio. Nada além do barulho da respiração e das botas metálicas quebrando o gelo, passo a passo. Mais o céu que perdeu as nuvens e ganhou milhões de estrelas, polidas como se feitas ontem. Céu de outro planeta. O encantamento se insinuou.
Atingimos o cume quando o sol nascia. Enxerguei toda a Cordilheira, até o Lago Titicaca. A beleza me arrebatou. O cansaço se foi, a bem-aventurança chegou. Algo como perder os sentidos e me integrar à natureza, virar a própria vida, sem corpo, sem mente, sem peso. Pura Vida. Sensação de ser vento. Se quisesse voar, voaria. Estava no meu próprio elemento. O esforço, uma vez mais, tinha valido a pena. Revivo agora esta sensação. A escrita me proporciona a volta ao topo do Huayna Potosí. Alcançar o final de uma crônica é sempre uma árdua conquista. Você, leitor, pode desistir no meio do caminho, me abandonar, mas, se leu até aqui, meu esforço valeu. Fizemos a escalada do texto. Chegamos ao objetivo. Nosso desafio vencido
Luis Giffoni é Escritor, Membro da Academia Mineira de Letras. Prêmio Jabuti