Decisões do STF, quocientes eleitorais e o pleito de 2026

A transformação de votos em mandatos proporcionais nas eleições se depara sempre com o problema matemático [...]

A transformação de votos em mandatos proporcionais nas eleições se depara sempre com o problema matemático de divisão proporcional conhecido como “partilha equilibrada”: como dividir de forma justa as vagas do Parlamento entre os partidos de acordo com a proporção de votos por eles obtida?

São vários os métodos empregados para resolver essa divisão, dentro os quais o método das maiores médias, utilizado no Brasil e em grande parte dos países contemporâneos. A maioria dos métodos usa como métrica inicial a razão entre os votos totais da eleição e o número de vagas a preencher para passar de votos a vagas legislativas. Tal razão, o quociente eleitoral (QE), representa o “valor” de uma vaga em termos de votos, ou o montante de votos válidos necessários para os partidos conquistarem uma vaga. 

Enquanto razão aritmética o QE tem sempre a mesma composição, mas sua funcionalidade muda em virtude das alterações na legislação. Antes da reforma eleitoral de 2017, por exemplo, o QE operava como barreira ou cláusula de desempenho: partidos só ascendiam ao Parlamento se o atingissem e, conseguindo esse feito, também ficavam com todas as sobras de voto (votos que sobram dos partidos depois de computadas as vagas que lhes couberam inicialmente).

Depois da reforma de 2017 e até 2021, o QE passou de barreira para parâmetro de referência: os partidos podiam se habilitar a vagas legislativas e disputar sobras mesmo que não o tivessem atingido. Após 2021, com a Lei 14.211/21, nova barreira foi imposta para o QE, desta feita mais branda: somente conquistariam vaga no Parlamento partidos que obtivessem 80% desse parâmetro, condição também exigida para a disputa de sobras, inclusive na última fase, a chamada fase da “repescagem” ou da “sobra das sobras”.

Em julgado recente o STF considerou inconstitucional a aplicação das cláusulas de desempenho instituídas nessa última fase da distribuição das sobras e definiu que todos os partidos poderiam participar do rateio dessa etapa, sem nenhuma restrição.

Nessa senda, a atual transformação de votos em vagas tem o seguinte rito: na primeira etapa, as vagas são preenchidas apenas por partidos que atingem 100% do QE e os candidatos com votação de no mínimo 10% do QE. As vagas não ocupadas nesta etapa são distribuídas por sobras de voto, com base no método das maiores médias.

Na segunda etapa, as sobras são disputadas apenas pelos partidos com votação maior ou igual a 80% do QE e os candidatos com votos de no mínimo 20% do QE. Na terceira etapa, havendo vagas remanescentes, elas serão preenchidas entre todos os partidos concorrentes, sem exigências de votações mínimas para partidos e candidatos.

Impende destacar, todavia, que para 2026, conquanto as três etapas do processo de transformação de votos em vagas legislativas permaneçam com a configuração descrita acima, os QEs de alguns estados tendem a sofrer variações por conta de outra decisão de STF, a que obrigou o Congresso a adequar as bancadas federais dos estados à variação populacional ditada pelo censo de 2022.

Tentando driblar tal determinação da Corte Máxima, o Congresso aprovou o PLP 177/23, que aumentava o número de deputados federais de 513 para 531, o que foi vetado agora em julho pelo presidente Lula. Como, ao que tudo indica, não há clima político para a derrubada do veto no Congresso, as bancadas dos estados para a eleição de 2026 deverão ser alteradas em 14 estados, 7 diminuindo e 7 aumentando.

Da feita que as vagas de deputados estaduais nas Assembleias Legislativas guardam relação com o número de parlamentares federais dos estados (CF, art. 27, caput e art. 32, § 3º), haverá correspondentes mudanças de vagas legislativas nos mesmos estados, para menos e para mais.

Para superar a mera abstração e adentrar na realidade, tome-se o caso do Rio de Janeiro. Imagine-se que os votos válidos permaneçam os mesmos em 2026 e que o número de parlamentares federais diminua de 46 para 42, em razão do decisum do STF.

Diante desse arcabouço hipotético, o QE em 2026 seria 8,4% maior que o da eleição passada, gravitando no entorno de 204 mil votos, threshold  para um partido conquistar vaga federal diretamente. Não atingindo esse QE, o partido pode ainda disputar sobras na segunda etapa, desde que obtenha 163 mil votos (80% do QE). Se, mesmo assim, o partido não alcançar esse número, pode ainda concorrer a vagas remanescentes na repescagem, com qualquer votação. Cabe advertir, por oportuno, que na eleição de 2022, em apenas quatro estados da federação se chegou a esta última etapa da repescagem para deputado federal e que, para deputado estadual, tal etapa não ocorreu em nenhum estado, posto que todas as vagas foram preenchidas antes.

É preciso relembrar que na primeira etapa, à exigência de 100% do QE para os partidos ganharem vaga, se adiciona o requisito de votação individual mínima de 10% desse parâmetro, in casu, 20 mil votos. Já para o partido com o mínimo de 80% do QE, disputando a segunda etapa, a votação individual requerida é de 20% do QE (41 mil votos).

Ainda no Rio de Janeiro, sob a guarida de suposições semelhantes, o QE para deputado estadual em 2026 seria algo no entorno de 129 mil votos, o mínimo para um partido ganhar vaga diretamente, ou de 103 mil votos, requisito para disputar vaga nas sobras da segunda fase.

Em que pese o trauma interinstitucional que se instala em consequência dos referidos julgados da Suprema Corte, há de se convir que o colegiado de juízes, pugnando pela inconstitucionalidade da terceira fase do atual mecanismo eleitoral, reparou as ofensas ao pluralismo político e à vontade do eleitor embutidos no regramento contestado e, também, garantiu o cumprimento do princípio constitucional da proporcionalidade entre bancadas estaduais e respectivas populações ao determinar as adequações pertinentes.


Maurício Romão é Ph.D. em Economia pela Universidade de Illinois, Estados Unidos. Fundador e Coordenador do grupo “Pesquisas em Definitely” com a participação de Pesquisadores de Mercado e Opinião no Brasil. Artigo originalmente publicado no Observatório ABRAPEL – Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais.