Cultura ampla, geral e irrestrita

Ora, ora, a cultura. Quando ouço a palavra cultura, puxo a minha arma e atiro um buquê de flores coloridas. Assim [...]

Ora, ora, a cultura. Quando ouço a palavra cultura, puxo a minha arma e atiro um buquê de flores coloridas. Assim penso a cultura: vária, colorida, democrática.

Um fotógrafo italiano amigo meu, que vai expor individualmente no Louvre no ano que vem, telefona-me da Bahia, e pergunto como vai a mostra dele em Salvador. Ele parece decepcionado e comenta: “Hoje, no Brasil, artista que não é preto, indígena, mulher ou LGBT não tem vez.” A declaração é inquietante. Como? Será?

Em 2023, ano da repaginação democrática do Brasil, a grande Festa Literária Internacional de Parati, FLIP, restringiu (ou abriu?) seu leque de atrações e temas a escritores afrodescendentes, mulheres, indígenas e divergentes de gênero. Outros eventos de arte pelo país, com significativo apoio oficial, encamparam a ideia, e foi sendo criada uma linha. A seguir, as telenovelas, das sete, das oito e das nove horas abriram seus elencos para o protagonismo afro. A televisão estava mesmo precisando dessa abertura, que nos representa melhor como população e expande o mercado de trabalho. A Academia Brasileira de Letras abraçou a causa. Academias regionais a seguiram. Na música popular, nos palcos, nas exposições, nos shows, no cinema, na literatura, nas artes em geral, brasileiros que eram menos visíveis agora se destacam. Pessoas lindíssimas apareceram.

É oportuno lembrar que no futebol, até 1922, pretos não podiam disputar o campeonato da 1ª Divisão na Capital Federal, então o mais importante do país. Era um esporte amador de clubes de ricos e da classe média alta. O Vasco da Gama, com sua equipe formada por trabalhadores negros e brancos, ganhou o campeonato de 1923, recusou-se a banir os “desqualificados”, como exigia a Liga Metropolitana, e ajudou a mudar a história do nosso futebol.

Um sentimento de reparação social subjaz a essa atitude no meio cultural. Nada mais justo. Paguemos, pois, a dívida e vamos em frente. O Brasil é mais complexo do que seus preconceitos. Falta muita coisa para muita gente. Reparações, se não vêm na medida necessária, geram enganos, esquecimentos, paternalismos, frustrações. Na falta daquela imprensa significativa que bem informava milhões de leitores há duas décadas, obras de artistas que não preenchem o figurino podem estar flutuando no vácuo dos eventos e da internet. Bons livros podem não chegar aonde seus autores pretendiam. Criadores esperam uma onda favorável para surfar.

Segundo dados do IBGE de 2020, quando a Covid-19 ainda não havia reduzido as atividades, o setor cultural empregava 7,4 milhões de pessoas, 7% do total de trabalhadores do país, e representava 3,11% do PIB brasileiro, acima da indústria automobilística, com 2,5%. A cultura é um enorme mercado de trabalho, onde cabem todos, os das letras, do teatro, das artes audiovisuais, do circo, da música, das artes plásticas, da dança, do cinemão… Cultura ampla, geral e irrestrita é alimento da democracia.


Ivan Angelo é Escritor e Jornalista. Foi Editor-Executivo do Jornal da Tarde, e colunista em várias Revistas e Jornais. Autor, duas vezes Prêmio Jabuti.

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