
Visando substituir o modelo proporcional de voto em lista aberta vigente no Brasil para eleições parlamentares, o Congresso Nacional, nas últimas sete legislaturas, se transformou num imenso laboratório experimental de propostas de sistemas eleitorais, debatendo mutações variadas nos mecanismos tradicionais: proporcional, majoritário e misto.
Suas excelências agora sugerem mais um teste nesse extravagante rol de experimentos. Desta feita, mediante a ressureição de uma proposta de 2017, do então senador José Serra, pretende-se importar o sistema distrital misto, espelhado na vertente alemã. Coisa requentada, mas agora travestida de novidade, o “voto único”.
O modelo distrital misto alemão conjuga os sistemas majoritário e proporcional de representação, em que o eleitor vota duas vezes: uma, no candidato de sua escolha no distrito (circunscrição eleitoral), pelo sistema majoritário, em que o mais votado é eleito, e outra, no partido de sua preferência, pelo sistema proporcional de lista fechada ou pré-ordenada, no qual o partido conquista o número de vagas correspondente à sua votação.
Na versão Serra aplicada no Brasil, para deputado federal, por exemplo, 50% das cadeiras da Câmara seriam ocupadas por parlamentares eleitos nos distritos de cada um dos 27 estados da federação e 50% por parlamentares eleitos por lista partidária nesses mesmos estados. O número de distritos em cada estado é correspondente ao respectivo número de cadeiras na Câmara (parte inteira da metade das cadeiras), designando-se a justiça eleitoral para estabelecer os limites geográficos dos distritos.
Nesse modelo, primeiramente se distribuem as cadeiras de acordo com o sistema proporcional, observando-se a votação recebida por cada partido. Depois se verifica a performance do partido nos distritos do estado, tendo-se presente que os eleitos nos distritos têm prioridade em compor as bancadas.
Em Pernambuco, à guisa de ilustração, o estado seria dividido em 12 distritos, de aproximadamente 596 mil eleitores. Assim, os 12 candidatos mais votados nos distritos e os 13 mais bem votados dos partidos que lograram vagas nas listas, comporiam a bancada de 25 representantes de Pernambuco na Câmara.
Imagine-se que um partido, o MDB, conquiste 3 vagas de deputado federal em Pernambuco na contagem proporcional. Se o partido não elegeu nenhum representante nos distritos, os 3 primeiros nomes da lista pré-ordenada é que vão para o legislativo. Se, elegeu um em determinado distrito, apenas os 2 primeiros nomes da lista é que completam a bancada e assim por diante.
Mas, e se o MDB eleger, diga-se, 5 deputados nos distritos? O que fazer, já que as vagas da lista são 3? Como acomodar esse excedente?
Esse é o problema que todo sistema distrital misto (de correção) tem que enfrentar quando um partido conquista mais cadeiras nos distritos do que que as obtidas na lista. O método alemão resolve a questão aumentando o número de vagas na Câmara dos Deputados, as conhecidas overhang seats.
Só que esses ajustes sistemáticos a cada eleição trazem consequências: o parlamento da Alemanha (Bundestag), que originalmente foi concebido com 598 cadeiras, já anda hoje na casa das 736, uma adição de 128 assentos.
O deputado Domingos Neto (PSD-CE)), relator da atual proposta distrital na Câmara, sugeriu evitar o overhang seats no Brasil mediante a instituição do voto único, em que o voto do candidato no distrito seria aproveitado para a legenda à qual pertence. O eleitor, dessa forma, ao invés de votar duas vezes, como no modelo misto tradicional, uma no candidato e outra no partido, consignaria apenas um voto.
A sugestão do relator conquanto impeça o overhang seats traz inconvenientes:
(1) altera a vontade do eleitor. O eleitor gostaria, por exemplo, de votar no seu candidato preferido no distrito, mas em um partido na lista que não fosse o mesmo do candidato. Na presente propositura legislativa não pode fazê-lo;
(2) modifica a lógica de equilíbrio do sistema misto, dando sobrepeso ao voto majoritário. A lista partidária passa a ser variável dependente e perde função representativa;
(3) os grandes partidos, que têm maiores possibilidades de ganhar eleições nos distritos, ficam fortes também nas listas, recebendo a maior parte dos votos, produzindo uma espécie de dupla-contagem. Partidos menores, com pouca ossatura de votos, que têm dificuldades eleitorais nos distritos, ficam sub-representados na lista partidária. O componente proporcional, que no modelo tradicional é usado para amenizar distorções, perde eficácia e até reforça as disfunções;
(4) prevalece a lógica individualista própria dos modelos distritais uninominais puros: a estratégia e estrutura da campanha são centradas no candidato e não no partido. A campanha é personalista e desfavorece siglas programáticas;
(5) gera impasse quando um partido consegue eleger um candidato em um distrito, mas não tem votos suficientes para obter vagas na lista proporcional. Como resolver?
(6) para dar vertebração de votos na variante proporcional os partidos se veem obrigados a ter candidatura majoritária em todos os distritos, aumentando seus custos;
(7) como o voto do candidato distrital se vincula à votação do partido, carece de sentido um partido receber votos dados a um candidato que não esteja nominalmente na lista, de sorte que é de todo lógico o candidato concorrer simultaneamente no distrito e na lista. Mas aí se abre espaço para uma possibilidade concreta de um candidato não eleito no distrito estar bem-posicionado na lista e levar uma vaga;
(8) Sendo o voto individual, os partidos priorizam candidatos puxadores de voto (celebridades, figuras midiáticas, influenciadores digitais etc.) para maximizar suas votações, fragilizando seus alicerces programáticos e aumentando o custo da campanha.
Os modelos eleitorais mistos são sempre complexos, posto que operam com dois sistemas de voto e o eleitor vota duas vezes. A simplicidade (inteligibilidade) requerida dos mecanismos eleitorais está longe de ser atendida em tal configuração. A versão “simplificadora” proposta pelo relator do projeto na Cãmara, de voto único, não foge à regra, e ainda, como se viu acima, adiciona mais complicações ao sistema.
Suas excelências da atual legislatura fariam melhor se esperassem maturar os efeitos da reforma eleitoral de 2017 e do regramento de 2021 e atentassem para o que recomenda as Nações Unidas, no seu Manual de Concepções de Sistemas Eleitorais, p.159, ad litteram:
“A experiência comparativa de reformas em sistemas eleitorais, até o presente, sugere que mudanças moderadas, com base no que funciona bem nos modelos vigentes, é bem melhor do que mudança para sistemas novos e desconhecidos”.
*Artigo em edição do Observatório ABRAPEL – Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais
Maurício Romão é Ph.D. em Economia pela Universidade de Illinois, Estados Unidos. Fundador e Coordenador do grupo “Pesquisas em Definitely” com a participação de Pesquisadores de Mercado e Opinião no Brasil.



