
Por que os protestos? Gaza, Ucrânia… War is kind – diz a ironia amarga de um poema de Stephen Crane, jovem romancista norte-americano do século 19: a guerra é amável, é gentil. Oh! Que delícia de guerra! – cantavam cinco generais na famosa comédia musical dos anos 60 do século passado. Pois então: também hoje a guerra é legal.
Com a consideração possível, para evitar traumas pessoais e problemas de consciência nas tropas, a guerra poupa os soldados de confrontos pessoais. Criou máquinas e artefatos que à distância de quilômetros escolhem alvos e disparam mísseis por sua própria escolha; os algoritmos decidem que grupos de pessoas eliminar, que prédios destruir. Os soldados só ficam sabendo dos danos depois: quantas crianças, quantas mulheres, hospitais, residências – cada um pensa “não fui eu”, e dorme sem culpa.
Relaxem. A guerra é piedosa.
Patrulhas de soldados percorrem as áreas devastadas e abreviam a tiros o sofrimento dos malferidos, crianças sem as pernas, mulheres com o ventre vazando tripas, velhos sem olhos. Piedosa, a guerra procura não deixar mães feridas chorando por seus filhos mortos, filhos sem mamas, pais coxeando em busca de pedaços nos escombros. Misericordiosa, a guerra encarrega patrulhas de fazer cessar esse sofrimento, para sempre. Compadecida, cuida que a humanidade não sofra junto a pena de tê-lo visto, e apaga o que pode.
Animem-se. A guerra é empreendedora.
Destrói casebres, muquifos, puxadinhos, prédios, mercados, escolas, tendas, vielas, mas tem grandes planos para o lugar. Sonhadora, alimenta a esperança de erguer das ruínas algo belo e limpo, com jardins, piscinas, spas, resorts, hotéis, cassinos, alamedas iluminadas, onde os ex-moradores poderão trabalhar para sustentar suas famílias.
Tenham paciência. A guerra é operosa.
Incansável, não deixa para amanhã o que tem de fazer. Gostaria de ser mais breve, mais rápida, acabar logo com isso, poupando material, tempo e o dinheiro dos apoiadores, mas há organizações e instituições e políticos contra a visibilidade e o estardalhaço que seria uma coisa dessas. Dedicada ao seu trabalho incansável, vê com contrariedade os que pedem moderação, preocupados com a imagem; o afã deles é ajudar, mas na verdade atrapalham.
Admirem. A guerra é moderna.
Nada resta daquela selvageria corpo-a-corpo que se vê no cinema. A tecnologia superou a antiga coreografia herdada do tacape, lança, flecha, espada, baioneta, cavalaria. Higienizada, a guerra agora não ostenta trincheiras enlameadas onde homens rastejavam como lagartos, pântanos com bichos sinuosos, escarpas extenuantes, sargentos gritando, carros de combate atolados na neve. Pensem num vídeo game, a inteligência artificiosa desenha o modelo. Eficiência é o nome do jogo.
Assistam. A guerra é espetáculo.
Filmada, fotografada, televisionada, vídeo gravada, ela está na sala de todos, urbi et orbi. Atenta às leis do espetáculo, que recomendam cenas fortes para comoção do público, ela direciona as lentes para o lado onde caem as bombas, deixa de mostrar o lado que dispara as bombas. Talvez não tenham mesmo interesse para o grande público as escolas funcionando, as filas frente aos cinemas que exibem os últimos premiados do Oscar, as lanchonetes atarefadas nos sábados dos adolescentes, os shopping centers vendendo bolsas de grife, o almoço das famílias precedido de graças a algum deus pelo retorno do filho sadio e salvo. Ele não será um neurótico de guerra porque do seu lado não existe envolvimento pessoal nos ataques, ele não vivenciou o pânico, o horror. Não há batalhas, no sentido clássico; não há heróis, no sentido clássico. Não há homens.
Ivan Angelo é Escritor e Jornalista. Foi Editor-Executivo do Jornal da Tarde, e colunista em várias Revistas e Jornais. Autor, duas vezes Prêmio Jabuti.