O retirante Isaías (por Lindolfo Paoliello)

Comecei a percorrer os órgãos do Governo e cheguei a ir no palácio do governador.[...]

O senhor então me avisa quando o avião chegar a Recife? Obrigado. É que de lá ele vai para outros lugares e eu não sei se eles costumam avisar. É minha primeira viagem de avião, o senhor imagina só o que estou sentindo. Minha família? Já veio, graças a Deus, faz mais de um mês: minha mulher, meu filho, Rivaldo, de três anos, e a garotinha, de poucos meses. Os passes pra viagem deles a gente conseguiu no hospital, onde nasceu nossa caçula, mas foi preciso muita luta. No tal Centro de Triagem, onde fomos há dois meses pedir passagens, disseram que era pra gente voltar em fevereiro do ano que vem.

Será que não estou incomodando? Falar me faz sentir bem, porque afasta o medo do avião. O senhor tem filhos? Então dá pra imaginar o que é ficar andando feito alma penada, atrás de um serviço que não aparece e, quando o dia acaba, a gente ver que não tem o que levar pra casa. Isso durou um ano e meio, eu tinha 20 quilos a mais e tinha cara de ter 21 anos, que é minha idade de verdade. Hoje acho que pareço ter uns 35.

Quando saí lá de Gravatá, em Pernambuco, tinha no bolso 300 reais Viajamos perto de três mil quilômetros, com muito calor e fazendo economia na hora das refeições. Mas viemos de ônibus, foi melhor do que muita gente que vem de caminhão. Na estação rodoviária nos indicaram o Centro de Triagem, onde passamos as primeiras semanas. Depois nos mudamos para uma favela, onde consegui alugar um barraco. O dinheiro ia minguando, minguando, e não aparecia trabalho: nunca tinha feito outro serviço que não fosse o da fazenda e, além de tudo, não sei ler nem escrever.

Um dia, com a graça de Deus, o serviço apareceu, como servente de pedreiro, um salário de 240 reais. Eu tomava café e almoçava no trabalho e o dinheiro dava pra sustentar o povinho. Aquilo lá em baixo já é Recife? Não? O senhor, por favor, não deixe de me avisar. Mas estava me saindo bem na firma quando tive o acidente que quase me levou uma perna e daí, então, fui “encostado” pelo INSS.

Daí pra frente é que começou o meu calvário. Tentei de tudo, inclusive vender frutas nas ruas, mas os fiscais não davam moleza e apanhei mais de uma vez. Levei um pontapé, aqui, e “cascudos” na orelha. Nunca tinha apanhado antes, resolvi não apanhar mais. Comecei a percorrer os órgãos do Governo e cheguei a ir no palácio do governador.

Foi quando me lembrei do hospital onde a menina tinha nascido e lá consegui os passes que a mulher e as crianças usaram pra viajar.

Nesse tempo, um médico, que eu tinha conhecido no hospital, me apresentou a uma grande empresa e eu ia sendo admitido. Mas, o senhor sabe, todo mundo tem seu segredo na vida. O meu, que chega a doer de tão trancado, é que sou epilético. A empresa tinha que descobrir? Pois descobriu e não fui admitido.

Passei a dormir nas ruas, comendo uma coisinha aqui, outra lá, até que aquele mesmo médico, que pra mim é um santo, juntou uns amigos e me comprou a passagem de avião. Ele me disse: “Vai, Isaías, você não disse que a fazenda lá de Gravatá se chamava Boa Esperança? Então, volta pra lá e começa tudo outra vez”.

E aqui estou eu voltando, até já me sinto outro. Vou direto pra fazenda do Coronel Chico Heráclito. Lá tem muita seca, mas dá pra gente viver. Não quero mais saber do Sul, onde só existe ilusão. O que? Já é Recife? Ah, meu Deus! Então amanhã já estarei em Gravatá. A fazenda aonde eu vou se chama Boa Esperança. Não é um nome danado de bonito?

Lindolfo Paoliello é cronista, autor de O País das Gambiarras, Nosso Alegre Gurufim e A Rebelião das Mal-Amadas.

Compartilhe esse artigo: