
A luz da tela do celular refletia o semblante cansado do motorista do Uber, enquanto percorremos as ruas de Maringá. O sotaque era inconfundível. “De onde você é?”, perguntei. A resposta veio carregada de uma melancolia discreta: “Eu sou de Boa Vista, Roraima. Mas precisei sair de lá. Os serviços pararam de funcionar.”
Ele não estava falando sobre uma crise econômica passageira, mas sobre o colapso do cotidiano. O motorista, nascido e criado no estado, explicou que a superlotação das escolas, a dificuldade em conseguir atendimento no SUS (Sistema Único de Saúde) e a competição acirrada por vagas de emprego o forçaram a se mudar para o Sul, a milhares de quilômetros de casa.
A raiz do problema é a maior e mais rápida crise migratória já enfrentada pelo Brasil: o fluxo massivo de venezuelanos.
Roraima, o estado menos populoso do Brasil, com uma população estimada em 738.772 habitantes em 2025, transformou-se no portão de entrada para a tragédia humanitária da Venezuela. Desde 2017, a Operação Acolhida, a resposta humanitária brasileira, atendeu a quase 1 milhão de venezuelanos na região.
Enquanto a população total do estado cresce, impulsionada pela migração, a capacidade de absorção dos serviços públicos atinge o limite. As estimativas mais conservadoras apontam que cerca de 180.000 venezuelanos residem hoje em Roraima, representando impressionantes 24,4% da população total.
Este desequilíbrio populacional cria uma pressão insustentável:
– Saúde em Colapso: Hospitais e maternidades de Boa Vista operam em superlotação constante. Os hospitais de fronteira, como em Pacaraima, transformaram-se em prontos-socorros sobrecarregados, lutando com a escassez crônica de insumos e profissionais para atender tanto à população local quanto aos recém-chegados, muitos em condições de saúde precárias.
– Educação em Crise: A falta de vagas nas escolas estaduais e municipais é um drama que afeta gerações. A dificuldade em matricular os próprios filhos foi um dos motivos decisivos para o motorista do Uber deixar sua terra natal.
– Tensão Social: A concorrência por empregos informais e a sobrecarga de serviços públicos aumentam o risco de xenofobia e conflitos sociais, minando a coesão comunitária.
O relato do meu motorista não é isolado; é um testemunho da ponta do iceberg de uma crise que já não é apenas venezuelana, mas estruturalmente brasileira.
A grande pergunta que ecoa é se o Brasil está correndo em direção a uma situação tão difícil quanto as crises migratórias testemunhadas na Europa, nos Estados Unidos ou, mais recentemente, no Chile. A resposta é complexa, mas guarda um fio de esperança.
As crises em outros lugares são frequentemente marcadas por:
– Foco em Segurança e Exclusão: Muitos países priorizam a construção de barreiras físicas e legais, dificultando a documentação, o acesso a direitos básicos e, por consequência, a integração formal dos migrantes.
– Concentração Desordenada: A falta de uma estratégia nacional de redistribuição leva à criação de grandes acampamentos ou guetos de pobreza e vulnerabilidade nas cidades de fronteira ou grandes metrópoles.
O Brasil, de forma diferente, possui um mecanismo vital para mitigar o problema: a Operação Acolhida.
A Operação Acolhida é, em essência, uma estratégia de distribuição do impacto. Ao invés de permitir que o fluxo de migrantes permaneça concentrado em Roraima, a iniciativa foca em:
– Documentação e Direitos: A Lei de Migração brasileira (Lei 13.445/2017) facilita a concessão de residência e documentos como o CPF, garantindo acesso formal ao SUS e à educação.
– Interiorização: Este é o coração da operação. É a transferência voluntária, com apoio logístico e financeiro, de venezuelanos de Roraima para outros estados brasileiros. A meta é distribuir a pressão demográfica e conectar os migrantes a redes de apoio familiar, vagas de emprego e oportunidades em cidades com maior capacidade de absorção.
Os números da interiorização são expressivos: mais de 150 mil venezuelanos já foram transferidos para centenas de cidades em todo o país. Essa política é o único fator que impede que a situação em Roraima se torne um colapso humanitário ainda maior.
A interiorização é apenas o começo. Para evitar que o Brasil se afunde em uma “situação difícil” de longo prazo, são necessárias ações contínuas e coordenadas:
1. Fortalecer a Interiorização e o Acolhimento nos Destinos
É essencial garantir que a capacidade de interiorização supere a taxa de entrada de novos migrantes em Roraima. Além disso, as cidades de destino precisam de apoio Federal para:
– Apoio à Inclusão Laboral: Criar programas de capacitação profissional e parcerias com o setor privado para inserção no mercado formal. A integração econômica é o caminho mais eficaz para a autonomia e a redução da dependência de assistência social.
– Infraestrutura Local: Financiar a abertura de novas vagas em escolas e o reforço da atenção básica à saúde nas cidades que mais recebem migrantes, evitando que o problema se desloque de Roraima para a periferia de São Paulo, Curitiba ou Porto Alegre.
2. Combate à Xenofobia e Integração Cultural
A longo prazo, o maior desafio é a aceitação. Investir em campanhas e programas educativos que promovam o respeito mútuo e a integração cultural é vital para evitar o surgimento de preconceito e tensão social que vemos em outros países.
3. Fortalecimento das Parcerias Internacionais
O Brasil deve continuar buscando apoio financeiro e técnico de agências internacionais (ACNUR, OIM) e de outros países para sustentar a Operação Acolhida, que é um esforço de escala global. A crise venezuelana não é um problema apenas brasileiro, mas regional.
A história do motorista do Uber de Roraima é um sinal de alerta. Ele representa a perda de um brasileiro que precisou deixar sua casa por causa da falência dos serviços públicos. O Brasil está, de fato, em uma situação de extremo desafio em Roraima, mas possui as ferramentas legais e logísticas para gerenciá-la de forma humanitária. O sucesso dependerá da vontade política contínua e do investimento necessário para que a Operação Acolhida se transforme não apenas em uma transferência de pessoas, mas em um modelo eficaz de integração e acolhimento em todo o território nacional.
A escolha é clara: ou distribuímos o fardo e investimos na integração, ou permitiremos que a crise em Roraima se espalhe e se torne um problema social crônico em escala nacional, se já não é!
Bruce Grant Geoffrey Payne Glazier
Membro Externo e Presidente do Conselho Consultivo da Fex Agro Comercial
Diretor da Valoradar
Trabalhou nos Bancos Lloyds, Singer & Friedlander e Mizuho e nas empresas Abril, Suez Environment, TCP Partners e BTG Global
Membro de Conselho certificado pela Fundação Dom Cabral
Mestrado em Finanças pela London Business School
Bacharelado em Economia e Ciências Políticas pela Northwestern University



