Pedofilia institucionalizada (por Palowa Mendes)

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Em meio aos escândalos recentes envolvendo segurança pública e corrupção no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, a Câmara dos Deputados, com protagonismo de figuras como Hugo Motta, Alcolumbre e Derrite (leia-se Tarcisio de Freitas), aprovou uma lei que institucionaliza uma das formas mais cruéis de violência.

Sim, a Câmara Federal aprovou o que se pode chamar de “PDL da Pedofilia”. Trata-se do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 3/25, uma legislação que, na prática, retira o direito de crianças e adolescentes estupradas de terem acesso ao aborto legal dos fetos gerados por essa violência. Por ser um Decreto Legislativo – instrumento para regulamentar leis de competência exclusiva do Poder Legislativo –, a medida não necessita da sanção do Presidente da República para entrar em vigor.

Movimentos progressistas, entidades da área de saúde, o Ministério das Mulheres e organizações de defesa dos direitos da criança e do adolescente posicionaram-se contrariamente à proposta, que revoga a Resolução 258/24 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente).

A alegação dos 317 deputados e deputadas que aprovaram o PDL 3/25 é a de que a proposta defende o direito à vida. Eles argumentam que os pais das meninas violentadas é que devem decidir sobre o aborto e que a vítima só poderá procurar o procedimento após o registro de um Boletim de Ocorrência.

No Brasil, segundo dados oficiais (sabendo-se que a maioria dos estupros não é notificada), sete crianças são estupradas por hora. Isso equivale a 168 por dia, totalizando mais de 40 mil crianças e adolescentes de até 14 anos violentadas anualmente.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024 mostra que a maioria dessas vítimas é estuprada por familiares ou conhecidos, com 61,7% dos casos ocorrendo dentro da própria casa da vítima. Dados do IBGE divulgados em 05/11, retirados do questionário do Censo 2022, revelam que mais de 34 mil pessoas entre 10 e 14 anos vivem em união conjugal no Brasil. Desse grupo, 77% são meninas. O Ministério das Mulheres informa que, entre 2013 e 2023, o país registrou mais de 232 mil nascimentos de mães com até 14 anos – faixa etária em que qualquer relação sexual é legalmente considerada estupro. Apesar da lei permitir o aborto nesses casos, em 2023, apenas 154 meninas em todo o país conseguiram acessar esse direito.

O que esses números nos dizem? Por que convivemos com essa realidade sem nos questionarmos? Por que legisladores, homens e mulheres, por todo o Brasil, elegeram a criminalização do aborto em casos de infância roubada como bandeira, usando o argumento da defesa da vida, dos costumes, da família e do “homem de bem”?

Por que a sociedade não se preocupa em discutir por que temos mais de 40 mil estupradores por ano? Quem são esses homens e por que permanecem impunes? Enquanto isso, o debate recai sobre o comportamento dessas crianças, incutindo nelas a culpa pelo abuso e impondo-lhes o fardo de carregar o fruto de uma violência que significou humilhação, dor e dominação – sendo, mais uma vez, usadas para o deleite desses homens.

A sociedade sempre encontrou desculpas para suas atrocidades, e as religiões sempre foram instrumentos para viabilizá-las. No mundo ocidental, Eva é a “fake news” usada até hoje como subterfúgio para que nós, mulheres, sejamos assimiladas à posse, ao uso, ao subjugo, à humilhação e à falta de direitos, sofrendo violências moral, física, sexual, psicológica e financeira.

O que acontece na Câmara Federal e nas instituições por todo o país é, mais uma vez, a religião tomando assento em um Estado que é, constitucionalmente, laico. Ela serve como aparato para pautas ultraconservadoras e negacionistas, que ferem os direitos humanos e reverberam os acordos de seus líderes – em sua maioria, “pastores” que, desde a Ditadura Militar, transformaram a fé em um grande negócio. São indivíduos que especulam no mercado financeiro, são empresários do agronegócio e investem em segurança privada armada. Somam-se a eles os conservadores da Igreja Católica que, apesar do Papa Francisco, mantêm dogmas criados para dominação e conservação de sua fortuna e poder.

Garantir a laicidade do Estado está se tornando cada vez mais difícil. O presidente anterior nomeou para o STF – guardião da Constituição – um ministro que se autointitula “radicalmente evangélico”. O presidente atual sinaliza que indicará um evangélico para uma cadeira no Supremo, como um aceno à população “cristã”. Isso aumenta a representatividade religiosa, justamente onde a garantia de um Estado Laico é primazia constitucional.

Palowa Mendes é Advogada, Ambientalista, Militante Social, e Assessora Parlamentar

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