
Domingo, 12 de outubro. Villa-Lobos. Seis e meia da manhã, e o parque já vibrava com camisetas coloridas, crianças empolgadas e adultos ajustando tênis. Meu marido se aquecia para os 5km, eu e meu filho nos preparávamos para a caminhada de 2,5km. Era a Corrida Divertida da Turma da Mônica, e no meio daquele burburinho todo, estava lá o Mauro Sousa — filho do Maurício, o homem que virou o mágico Nimbus nas páginas dos gibis e que, poucos dias depois, interpretaria o próprio pai no cinema. Mauro foi de uma simpatia que aquecia mais que o sol nascente. Conversou, riu, posou para fotos. E eu pensei, ali: “Isso aqui não é só uma corrida. É outra coisa.”
Foi só depois, quando o calendário virou e chegamos ao dia 27 de outubro, que entendi o que estava acontecendo. Maurício de Sousa completava 90 anos. E parecia que o Brasil inteiro tinha decidido, ao mesmo tempo, retribuir ao Maurício tudo que ele nos deu durante nove décadas. Não foi coincidência. Foi combinado — não no sentido de conspiração, mas no sentido mais bonito da palavra: como se todas as partes do país tivessem acordado com a mesma vontade de dizer “obrigado”.
Nos cinemas, estreava “Mauricio de Sousa – O Filme”, cinebiografia em que Mauro interpreta o pai. Que círculo perfeito. O filho que virou personagem agora vira o criador de todos os personagens. A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo não só exibiu o filme como entregou a Maurício o Prêmio Leon Cakoff, reconhecendo uma trajetória que começou nas tirinhas de jornal e virou patrimônio afetivo de um país inteiro. Nas livrarias, chegava o “MSP90” — um livro organizado pelo jornalista Sidney Gusman que reuniu 90 quadrinistas de todo o Brasil. Cada artista ganhou três páginas para reimaginar os personagens da Turma. São 270 páginas de afeto puro. E tem gente fazendo coisas lindamente inusitadas: a quadrinista Helô D’Angelo, por exemplo, escolheu a Dona Pedra como protagonista. Isso mesmo, aquela pedra filosófica com quem o Bidu conversa nos gibis antigos. “Coloquei a Pedra porque ela é uma das poucas coisas fixas na nossa vida”, explicou. É metalinguagem. É poesia. É a prova de que Maurício criou um universo tão rico que até uma pedra pode ser musa.
Em São Paulo, o prefeito Ricardo Nunes enviou à Câmara um projeto para reconhecer a obra de Maurício como Patrimônio Cultural e Imaterial da cidade. No Rio, o BioParque e o AquaRio montaram painéis instagramáveis recriando o estúdio do cartunista e convidaram o público a participar de um grande “Vamos Colorir” — pinturas coletivas com mensagens de carinho para o ilustrador. No Paraná, o Parque Estadual de Vila Velha fez o mesmo. Desenhos coloridos por crianças de todo o país foram enviados diretamente ao Maurício. E teve a festa intimista, claro. No dia 27, Maurício soprou as velas de um bolo temático da Turma da Mônica cercado pelos nove filhos. Mauro compartilhou as fotos nas redes: “Registros de PURA FELICIDADE”. O aniversariante com o sorriso largo que sempre o marcou. Estava em casa. Estava cercado de amor. Estava exatamente onde precisava estar.
Tem algo quase mágico em tudo isso. As comemorações não foram institucionais, não foram marqueteiras. Foram genuínas. Foi um movimento nacional de devolução. Pensa comigo: Maurício começou desenhando nas horas vagas, quando trabalhava como repórter policial na Folha da Tarde. Criou o Bidu em 1959, a Mônica em 1963 — inspirada na própria filha. E foi construindo, traço a traço, um império que hoje fatura R$ 2 bilhões por ano. Mas o império não é de dinheiro. É de memória afetiva. Mais de 1 bilhão de gibis vendidos. Mais de 400 personagens criados. Traduções para 14 idiomas. Presença em 40 países. Parques temáticos que recebem quase 1 milhão de visitantes por ano. Séries, filmes, produtos licenciados. A MSP responde por 89% do mercado nacional de quadrinhos infantojuvenis. Mas o que realmente define o legado de Maurício de Sousa não são os números. É o vínculo afetivo. É o fato de que mais de 80% dos brasileiros já leram um gibi da Turma da Mônica. É saber que esses gibis ajudaram milhões de crianças a aprender a ler — e que, por isso, Maurício foi homenageado pela UNESCO e eleito para a Academia Paulista de Letras, sendo o primeiro desenhista a ocupar uma cadeira na instituição.
Voltando à corrida. Quando cruzamos a linha de chegada, ganhamos medalhas. Meu filho pendurou a dele no pescoço com orgulho. Depois, fomos ao Festival da Turma da Mônica, que ocupava o Villa-Lobos com shows, brincadeiras, personagens circulando. Eram milhares de pessoas. Famílias inteiras. Avós, pais, filhos — três gerações conectadas por aqueles mesmos personagens. E eu percebi: isso aqui é raro. Pouquíssimas marcas conseguem isso. Conversar com crianças, pais e avós ao mesmo tempo. Atravessar o tempo sem envelhecer.
Maurício de Sousa tem 90 anos e ainda desenha. Ainda trabalha. Ainda cria. E o Brasil, que cresceu lendo suas histórias, que aprendeu a ler com Cebolinha trocando os “r” pelos “l”, que riu com o Cascão fugindo do banho, que se identificou com a força da Mônica e a fome da Magali — esse Brasil decidiu que era hora de retribuir. Com um filme. Com um livro de 90 artistas. Com corridas, festivais, exposições, painéis, desenhos coloridos, prêmios, projetos de lei. Com um bolo de aniversário cercado de amor. Foi espontâneo. Foi um abraço coletivo.
E talvez seja isso que torna os 90 anos de Maurício de Sousa tão especiais. Não é só a celebração de uma vida. É a materialização de algo maior: a prova de que histórias bem contadas, personagens bem criados e afeto bem distribuído têm o poder de construir pontes entre gerações. Domingo que vem, alguém no Brasil vai abrir um gibi da Mônica. Uma criança vai descobrir pela primeira vez o Bairro do Limoeiro. E o ciclo continua.
Eu também quero fazer parte desse abraço coletivo. Não só correndo naquele domingo de outubro, mas escrevendo esse texto agora. Porque os personagens de Maurício fizeram parte da minha infância — quando eu descobria o mundo através de algum dos gibis da Mônica ou brincava com sua boneca — e hoje fazem parte da do meu filho. O primeiro parque que eu e meu marido levamos o Ben foi o Parque da Mônica. Ele tinha acabado de fazer 3 anos. Lembro do brilho nos olhos dele ao ver, pela primeira vez, aqueles personagens que viviam nas páginas dos livros ganharem tamanho real. Lembro de pensar: “É isso. Estou passando pra frente o que recebi.”
Essa é a mágica: a capacidade de Maurício de criar algo tão verdadeiro que transcende o papel, que vira memória, que vira herança. Eu li Turma da Mônica. Meu filho lê. E quando ele tiver filhos, eles também vão ler. Não porque alguém mandou, mas porque essas histórias carregam algo que não envelhece: a sensação de pertencer a algum lugar. De ter, no meio do caos, um Bairro do Limoeiro para chamar de seu.
Então vai aqui meu obrigado também, Maurício. Pelos traços que viraram abraços. Pelas histórias que viraram pontes. Por ter nos ensinado que o maior legado que alguém pode deixar não está nos números, mas na capacidade de fazer o coração de gerações bater no mesmo ritmo.
*Artigo originalmente publicado no Diário de Taubaté e Região
Danielle Balieiro Amorim é Jornalista, Escritora e Ghost-Writer. Na Accenture, desenvolveu expertise em Comunicação, Gestão de Pessoas, PMO, Treinamento e Desenvolvimento, entre outras áreas. Escreve duas colunas semanais para o jornal Diário de Taubaté e para revistas brasileiras nos Estados Unidos. Tradutora dos idiomas Inglês, Português e Espanhol. Autora do livro infantil “As Aventuras de Ximin em: Floresta Mágica”. Podcast para crianças no Youtube: “Contos para Sorrir”.

