Viver naturalmente (por Lindolfo Paoliello)

“De repente, lembrei uma fantasia de Coleridge. Alguém sonha que atravessa o paraíso e lhe dão como prova uma flor. Ao acordar, ali está a flor” - Jorge Luis Borges.[...]

A mão da jovem irmã da amiga abafou docemente as cordas do violão, que tocava um samba canção qualquer, e ela disse:

– Querido, a música desse tempo era bonita, mas tinha algo fundamentalmente diferente da música de hoje: ela sobrepunha a tudo a melancolia do amor perdido: “Hoje eu já cansei de pra você não ser ninguém”. “Você passa por mim e não olha” … e vai por aí afora. Depois veio a bossa-nova e começou a falar de sol, mar, praia, e foi como que uma transição para a fase atual.

E continuou:

Agora o importante é curtir o momento. Vivê-lo até não poder mais. Se puder ser com o amado ou a amada, ótimo; se não, tudo bem também: a manhã não fica menos bonita, sem ele ou sem ela. Lembra-se do filósofo que disse que não se pode pisar pela segunda vez as mesmas águas de um rio? Pois não é menos verdade que o rio corre continuamente e que as outras águas que pisamos são também frescas e agradáveis.

Ele deu uma golada do Whisky, para desatar o nó que de repente sentiu formar-se na garganta, enquanto ela falava:

– A verdade é que a música tem mais é que retratar o tempo em que é feita. A bossa-nova era uma música bonitinha, delicada, mas era ingênua e guardava ainda muita coisa daquele masoquismo do samba-canção. Hoje o lance é curtir o corpo, numa boa, e você vê que a música e a dança refletem isso.

Ele digeriu uma dose consideravelmente maior do que as anteriores e arriscou:

– Curtir o corpo, pigarreou, você quer dizer sexo? Quer dizer que a coisa tá assim, é?

Ela olhou para ele como se olha para um cachorrinho de quem se tem pena, bateu-lhe no joelho e disse:

– Não querido, não é isto. Sexo é algo que de repente pode acontecer, mas há muita coisa além dele: a forma de se alimentar, de buscar a paz interior, de cuidar do corpo, de encarar o amor.

Fez sinal para que esperasse e deu um mergulho na piscina, voltando atrapalhada com os cabelos longos:

– Perdi meu passador, mas tudo bem: não tem o menor valor. Agora, escute aqui: isso que eu lhe falei não tem nada a ver com “cultura física”. Está muito mais próximo da ioga, da meditação, do relaxamento, da massagem. “Curtir o corpo”, no fundo, não é só uma forma de sermos mais saudáveis e belos, fisicamente, mas de nos tornarmos melhores, mais humanos.

Disse tudo isso e saiu, exalando graça, juventude e água-de-cheiro; vai ver que, de manhã, tinha tomado mingau de milho com mel de flor-de-laranjeira.

Ele deixou-se ficar olhando-a afastar-se, quando viu o passador, na beirada da piscina. Pegou-o e brincava com ele, pensativo, no momento em que sua mulher chegou e ele o entregou, desinteressado, dizendo “olha como essas meninas são descuidadas”. Levantou-se, cantarolando uma bossa-nova “ingênua e masoquista”, enquanto pensava em preparar um chá de avenca, santo remédio para males do peito.


Lindolfo Paoliello é cronista, autor de O País das Gambiarras, Nosso Alegre Gurufim e A Rebelião das Mal-Amadas.

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