O grande di(gi)tador

Tenho nas mãos nove dedos analfabetos. Apenas meu indicador direito conhece as letras e as encontra no teclado. [...]

Tenho nas mãos nove dedos analfabetos. Apenas meu indicador direito conhece as letras e as encontra no teclado. Apenas ele sabe transformar os toques em palavras, frases, crônicas e romances. Depois de localizar cada vírgula, cada acento, depois de escolher um sinal por vez, só então meu único letrado aperta a tecla de leve, e a mágica acontece. Toque a toque, as ideias pipocam na tela. Parece até que a máquina gosta de carinho humano: após tanta atenção, responde ao contato, entrega-se, vira texto Seria a versão atual do milagre da multiplicação. Em vez de pão, palavra.

Já tentei alfabetizar meus outros dedos, mas me decepcionaram. Uma lástima meus polegares, médios, anulares, mindinhos e o outro indicador. Insisti. Em vão. Ou não se interessam em criar ou não têm competência. Acho que tenho mão boba. Assim, continuo unidigital. Bato as teclas uma a uma.

Isso gerou uma dependência perigosa. Sem concorrência, meu indicador direito se impôs, virou tirano. Tirano arrogante, metido, de nariz em pé. Só se mexe quando quer. Uma luta motivá-lo. De vez em quando, cruza os braços, não há o que o faça escrever. Quando trabalha, impõe seu ritmo. Faz mais de um ano que começou um romance e produziu apenas quarenta e poucas páginas, mesmo assim a trancos e retrancas, sempre com aquele olharzinho crítico de que meu texto anda péssimo. Às vezes, para me entregar uma crônica, como esta aqui, ele me enrola, faz greve, diz que está com a cabeça oca ou que o problema não é dele e, só no último momento, decide colaborar, satisfeito após haver reafirmado sua posição de “primo capo”. Esse orgulho me irrita. Durante minhas muitas décadas de vida, em raríssimas ocasiões me proporcionou um furor criativo digno de nota. No mais, vivo nessa peleja constante, letra por letra, toque a toque. Ralação a cada dia, a cada texto. Eu sempre submisso ao ditador digitador. Di(gi)tador.

Minha redenção está a caminho. Vão lançar um computador que funciona com o pensamento. Nada de dedo, nada de teclado. O cérebro fará todo o serviço. Ele foca uma letra e, plim!, a letra aparece na tela. Num segundo, uma frase inteira será construída. Aposentarei meu di(gi)tador, rirei por último. Contei essa história para ele, e o danado riu. De chorar. Disse que sou mesmo bobo. Quando eu passar a utilizar o novo artefato, aí, sim, conhecerei o grande ditador, aquele dá as cartas para o corpo inteiro, a quem todos os dedos obedecem, o “primo capo di tutti capi”, o que trabalha quando quer, como quer, se quiser, e mandará como bem entender. Com cinismo, afirmou que, com o novo computador, trocarei seis por meia dúzia. Talvez seja até pior. Não entendi. Acho que é despeito de quem está com os dedos cortados, ou melhor, com os dias contados.

Luis Giffoni é Escritor, Membro da Academia Mineira de Letras. Prêmio Jabuti