
A administração Trump continua a surpreender aliados e potenciais “adversários” com suas decisões de política comercial e no campo da geopolítica. Diferentes narrativas têm sido apresentadas para descrever os primeiros seis meses da sua administração. Para os apoiadores do Presidente Trump, as medidas adotadas contribuem para confirmar o excepcionalismo da economia dos EUA e a sua dominância geoeconômica. O mercado de capitais continua a se movimentar de forma positiva impulsionado pelo dinamismo de empresas de alta tecnologia, muito embora alguns “soluços” tenham ocorrido em abril. De acordo com essa perspectiva, as medidas mercantilistas dos EUA e o aumento significativo de suas barreiras tarifárias irão promover a reindustrialização do país sem provocar um novo surto inflacionário. O único senão no quadro econômico atual adviria da obstinação do Fed (o Banco Central dos EUA) em manter taxas de juros de curto prazo relativamente elevadas (de 4,25 a 4,5%).
Já para a oposição à administração Trump a narrativa é bem distinta. O aumento das tarifas inevitavelmente terá um impacto nos preços para consumidores e empresas norte-americanas nos próximos meses. A possibilidade de um período de estagflação no segundo semestre de 2025 recebe uma atenção crescente. Os dados macroeconômicos mais recentes ilustram essa preocupação. O mercado de trabalho vem desacelerando e a recente revisão dos dados de maio e de junho, bem como os resultados pífios para o mês de julho, geraram um episódio emblemático: no caso de notícias ruins, elimine o mensageiro. O Presidente Trump determinou a destituição da Comissária do Bureau de Labor Statistics, o órgão responsável pela elaboração das estatísticas do mercado de trabalho nos EUA.
O mercado de trabalho nos EUA ainda apresenta resultados sólidos com um nível de desemprego de cerca de 4,2%. Mas essa cifra é influenciada pela política de imigração da administração Trump, que tem diminuído a oferta de trabalhadores imigrantes nos EUA. Esse efeito tende a aumentar o poder de barganha dos trabalhadores empregados e, por conseguinte, o impacto das novas tarifas nos preços domésticos pode alimentar uma espiral inflacionária.
Embora o índice de preços ao consumidor continue a apresentar números moderados (2,7% ao ano), o índice de preços ao produtor ao final de julho registrou um aumento substantivo, levando a taxa anual do Producer Price Index (PPI) para 3,3%. O aumento no PPI sugere que os efeitos da política tarifária dos EUA começam a impactar agentes econômicos. É difícil estimar como isso afetará os níveis de preços para os consumidores pois empresas podem estar postergando os reajustes de preços, com impacto em suas margens de lucros, dada a volatilidade da política tarifária. Mas o cenário de estagflação recebe uma atenção crescente nas narrativas críticas à administração Trump.
O mercantilismo e o “bullying” contra parceiros comerciais, por sua vez, estão solapando a relevância de estruturas de governança multilateral (por exemplo, a Organização Mundial de Comércio, OMC). Além disso, o ativismo comercial dos EUA contribui para uma fragmentação geopolítica, que poderá culminar com o reestabelecimento de esferas de influência identificadas, por exemplo, com os EUA e a China.
Os casos do Brasil e da Índia ilustram os dilemas enfrentados por “potências” regionais em meio a esse cenário de fragmentação geopolítica. Ambos os países foram “presenteados” com as tarifas mais elevadas (50%) da onda protecionista dos EUA. Como discuti anteriormente (“Tarifas, Caça Às Bruxas E Maquiavel”, 21/07/2025 – Capa Brasil), o Brasil foi inicialmente agraciado com uma tarifa recíproca mínima de 10% no Liberation Day (2/04/2025), refletindo o fato de que o Brasil vem acumulando déficits em sua balança comercial de bens com os EUA. No período 2015-24, por exemplo, os EUA acumularam um superavit comercial da ordem de US$ 91,6 bilhões no comércio de bens com o Brasil (e um superavit de US$ 165,4 bilhões no comércio bilateral de serviços). Nesse contexto, a expectativa era de que as exportações brasileiras estariam entre aquelas menos impactadas pelo protecionismo norte-americano já que a média inicial das tarifas anunciadas era superior a 20%. No dia 9 de julho, porém, os EUA iniciaram o envio de cartas para diferentes países anunciando novas tarifas que passariam a ser aplicadas em 1 de agosto. No caso do Brasil, a tarifa anunciada foi de 50% em contraste com os 10% anunciados inicialmente.
O caráter político dessa decisão é ilustrado pelo parágrafo inicial da missiva do Presidente Trump que argumentava que o processo judicial contra o ex-Presidente Bolsonaro caracterizaria uma “caça às bruxas” e deveria ser abandonado imediatamente. A carta também argumentava que a corte suprema brasileira tem adotado práticas de censura, que afetam redes sociais de empresas dos EUA. Além disso, os EUA iniciaram uma investigação com base na Seção 301 (do Trade Act de 1974) no dia 15 de julho, alegando práticas desleais de comércio com respeito a comércio digital, serviços eletrônicos de pagamentos, tarifas preferenciais, práticas de combate a corrupção, proteção inadequada de propriedade intelectual, acesso de mercado para o etanol e deflorestamento ilegal.
No dia 30 de julho, os EUA anunciaram uma lista de exceções à tarifa de 50%, abrangendo cerca de 694 produtos (incluindo aviões, óleos brutos de petróleo, suco de laranja congelado, ferro fundido bruto, e pastas químicas de madeira). As exceções amenizam o impacto das medidas protecionistas dos EUA já que cerca de 41% das exportações brasileiras (em termos de valor) no primeiro semestre de 2025 continuariam a ser taxadas com uma tarifa de 10%. Mesmo assim, o impacto para setores não incluídos nas exceções (por exemplo, máquinas e equipamentos, carne bovina, frutas, café, produtos semimanufaturados de ferro ou aço) será substantivo.
O caso da Índia também ilustra a dimensão política das decisões tarifárias dos EUA. A tarifa “recíproca” inicial anunciada para a Índia foi de 25%, que passou a ser aplicada em 7 de agosto. No dia 6 de agosto, no entanto, a administração Trump anunciou uma tarifa adicional de 25% contra a Índia, aumentando para 50% a tarifa que passará a prevalecer a partir de 27 de agosto. Se a lógica utilizada para a decisão original era “corrigir” o déficit comercial dos EUA com a Índia (cerca de US$45,7 bilhões em 2024), a sobretaxa adicional é racionalizada como uma forma de punir a Índia pelas suas importações de petróleo russo, que seriam uma fonte importante de financiamento da “máquina de guerra” da Rússia.
A Índia aumentou significativamente as suas importações de petróleo russo nos últimos anos. Antes de 2022, a Índia importava da Rússia menos de 2% das suas importações de petróleo. No ano fiscal de 2025, o petróleo russo passou a representar cerca de 40% das importações de petróleo da Índia (mais do que 1,7 milhão de barris por dia).
Cabe assinalar que a China importa uma proporção ainda maior do petróleo russo. Em 2024, a China importou aproximadamente 2,17 milhões de barris por dia. No entanto, os EUA prorrogaram a trégua na “guerra comercial” com a China por mais noventa dias em 11/08/2025. Nesse contexto, os EUA mantiveram uma tarifa de 10% (em contraste com os 34% anunciados no Liberation Day) e uma tarifa adicional de 20% (associada com o tráfico de fentanil) – além de tarifas associadas com decisões baseadas na Seção 301. A diferença de tratamento entre Índia e China, porém, ilustra o caráter errático das decisões de política comercial dos EUA. É evidente que a capacidade de retaliação já demonstrada pela China em abril e o alto grau de integração das duas economias diferenciam a China de outros membros dos BRICS. O contraste entre as narrativas econômicas sobre o futuro da economia dos EUA continuará nos próximos meses. O discurso de Jerome Powell, líder do Fed, em Jackson Hole (22/08/2025) foi, como é usual, equilibrado ao mencionar a desaceleração de crescimento e o perigo de um aumento de pressões inflacionárias. As reações iniciais nos mercados financeiros (aumentos no valor das ações em Wall Street e dos preços de títulos governamentais) sugerem que os mercados estão focando as suas atenções na observação feita de que o balanço dos riscos para a economia dos EUA parece estar se alterando. Essa mensagem aumentou as apostas de que o Fed irá cortar a taxa de referência em cerca de 25 bps em setembro. Em tal cenário, a narrativa sobre o excepcionalismo da economia dos EUA irá ganhar sustentação no curto prazo. Mas os efeitos deletérios da política comercial dos EUA e o crescente desequilíbrio fiscal continuarão a gerar preocupações sobre a sustentabilidade dessa trajetória a médio prazo.
Carlos Primo Braga é Ph.D. em Economia pela Universidade de Illinois Urbana-Champaign, Professor Associado da Fundação Dom Cabral. Foi Diretor de Política Econômica e Dívida do Banco Mundial. Autor.