
Grande parte da encrenca, aparentemente ideológica, esconde, na verdade, um velho e conhecido Brasil. Três assuntos importantes merecem discussão fora do estapeamento atual, tendo em vista as preferências dos governos pós-2003: clientelismo, corporativismo e a ignorância travestida de ideologia.
Primeiro, o velho clientelismo continua ativo e operante. O “aparelhamento” do Estado, repetidamente vituperado por analistas à destra, de fato nada mais é que o velho clientelismo. Quando é feito pela esquerda recebe outro nome, mas, estejamos seguros, é o nosso velho conhecido clientelismo, compadrio.
Os governantes, desde 2003, resolveram entregar cargos e postos a seus seguidores e associados. A isto se chamou de “aparelhamento”. Apenas fizeram exatamente como o faria qualquer coronel clássico da política brasileira e exatamente como, pelo que se sabe da lista de cargos e seus pesos respectivos, o teria feito Tancredo Neves, em 1985.
Acontece, de um lado, que os “companheiros” nunca acharam que isto não passava do velho clientelismo e da velha patronagem da cena brasileira. Acharam que era uma missão ideológica. De outro lado, os críticos, capturados por outras razões ideológicas, deixaram de dar “nomes aos bois”. Então, ficou combinado, quando um político tradicional faz estas coisas, é clientelismo e patronagem, quando um “partido novo” faz as mesmas coisas, é “aparelhamento”, na cabeça dos críticos e, na cabeça do partido, uma missão ideológica.
Tive a oportunidade de conviver, como técnico, com governos vários desde a década de oitenta do século passado. Se alguma coisa houve de diferente nos governos pós-2003, foi o exagero. Ocuparam cargos em muitos níveis do governo. Trouxeram, de toda a parte do país, amigos, associados, militantes, para postos do governo federal.
Tive a oportunidade de interagir com alguns deles, completamente incompetentes tecnicamente e incapazes de entender o que se passava. Eram boas pessoas, militantes honestos, que pensavam que em postos de direção no governo federal há muita política a fazer. Vinham com o apetite dos movimentos sociais, com o apetite de quem disputava a presidência há tempos, e agora iam fazer a “política” certa. Acontece que o governo é uma enorme e brutal máquina técnica, normalmente ocupada por servidores de boa qualidade, na qual a política sindical ou de movimentos sociais nada tem a fazer.
Em verdade, tive compaixão, senão pena, daqueles que foram trazidos de suas militâncias para o interior desta máquina técnica. Um vexame. Um atraso. Uma adição de incompetência à uma máquina que prescinde de ajuda para ser incompetente; por conta de suas amarras e burocratismo, não precisa de ajuda. Os servidores públicos de nível técnico, na sua maioria, são exemplares, e nem assim conseguem desemperrar as amarras. Imagine o que acontece quando recebem uma infusão de incompetência.
Ao clientelismo esquerdista faltou a sabedoria histórica do clientelismo, coronelagem e patronagem clássica. Errou na mão, com resultados pífios. Manteve, contudo, a lógica do coronelato: todos sabem quem são os chefes, quem é o chefe, e para onde fluem os recursos de poder, prestígio e recursos. Nada de novo na gramática, algo de novo no exagero.
A outra ponta, prima da primeira, é o corporativismo. Ao contrário do clientelismo; que é mecanismo informal de acumulação de poder, dinheiro, honra e prestígio. O corporativismo é protegido por leis e administrado por sindicatos, federações e confederações, inclusive patronais, que extraem do governo, depois que o Congresso lhe dê uma lei de reconhecimento, os benefícios e o poder que desejam.
Os governos pós-2003 desenvolveram uma preferência eletiva para tratar com a “sociedade civil organizada”, resumidamente, desenvolveram uma preferência para lidar com corporações que são donas de benefícios e regras de barreira que o Estado lhes confere. Dos sindicatos à UNE (para minha tristeza, como militante dos anos 60) o governo cedeu às corporações e movimentos sindicais patrocinados, uma sociedade no poder.
A combinação de clientelismo com corporativismo, enquanto há recursos orçamentários disponíveis, é muito boa. Você compra os movimentos sociais, dá poder às corporações em geral, para dizer o que deve ser o conteúdo da “política pública”, que passa a ser a política das corporações e do clientelismo.
Tudo isso passa sob o véu de ideologia, quando nada mais é que o Brasil tradicional em funcionamento. Acontece que isto custa caro, esta gente toda precisa ser comprada com verbas, favores, benefícios e compromissos. Todos gostam de você até seu dinheiro ser curto.
Quando falta a grana, o orçamento público que você gastou com os amigos e o apoio, seus amigos começam a faltar. A “ideologia” começa a faltar. E você, governante populista, clientelista, corporativista, fica abandonado.
Aí você descobre que errou. Você não está sozinho neste erro. Outros presidentes passaram por isto. É que sua conta só fecha se houver prosperidade econômica, se os preços não incomodarem, sem mencionar o fato de que você precisa ter bons amigos na elite empresarial, sindical e dos movimentos sociais, exatamente aqueles que você financiou e hoje te abandonam. Pergunte ao Sarney, ao Jango, a Vargas qual é o tamanho da encrenca quando você erra na mão.
A terceira perna é a ignorância. Toda esta encrenca requer competência política, técnica e analítica. O Brasil não se presta a amadores, como já se disse. A ignorância, de que o governo federal é uma mistura sofisticada, de gramáticas políticas, clientelistas, corporativistas, técnicas e individuais, obscurece a vista do amador, para ficar no Tom Jobim.
Gastemos um parágrafo com a ignorância, a meu ver um dos principais ingredientes da crise atual. Governos são entes complexos, requerem a observação de um sistema de equações múltiplas com incógnitas, às vezes, em excesso. Sistemas de tal complexidade requerem cuidado e análise. Não vale atribuir ao recurso banal (foi uma conspiração, foi a Globo, foi o FHC, foi o PT) a explicação para a eventual insolubilidade de um sistema de equações com número excessivo de incógnitas.
Ao ignorar que a vida social e política é multivariada e insolúvel, precisaríamos admitir os limites da nossa cognição e precisaríamos aceitar a noção de que precisamos pensar, discutir, negociar, para muito além das preferências ideológicas que parecem nos separar ou confortar no momento.
As gramáticas tradicionais da política brasileira são nossas velhas conhecidas, tudo bem. Mas a ignorância, como aponta a crise atual, é igualmente grave. A ignorância é devastadora. E se for baseada em eventual ideologia, ainda é pior.
Edson de Oliveira Nunes é Ph.D. em Ciências Políticas pela Universidade de Berkeley. Foi Presidente do IBGE, Presidente do Conselho Nacional de Educação, pró-Reitor da Universidade Candido Mendes. Autor